quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

* OS QUARENTA POEMAS (GATHAS) DA TRANSMISÃO CH'AN

Tradução para o português de Wu-ming (1947-    )

Introdução Ch’an pelo Upãsaka Lu K’uan Yu
(1898-1978)


Nos refugiamos no Buda,
Nos refugiamos no Darma,
Nos refugiamos na Sanga,
Nos refugiamos na gema Tríplice dentro de nós mesmos.



Temos o prazer de apresentar os Quarenta Poemas (Gathas) da Transmissão Ch'an.
Como o Buda disse no Sermão do Diamante (Vajracchedikã-prajnã-pãramitã Sutra), Ele não ensinava nenhum Darma especifico, já que sua doutrina consistia apenas em apagar todos os pensamentos que agitavam a mente, que assim podia permanecer na quietude, de forma que a sabedoria, inerente a cada ser humano, pudesse se manifestar por si mesma e perceber a própria natureza com o objetivo de alcançar a Budeidade. Entretanto, como os homens tinham capacidades diferentes para assimilar a verdade, Ele foi obrigado a ensinar a doutrina Hinayana (do Pequeno Veículo) àqueles que eram capazes de entender apenas a verdade incompleta, e a doutrina Mahayana (do Grande Veículo) àqueles que estavam prontos para o ensinamento final. Isto é o que chamamos de o método apropriado da escola de ensinamento através dos sutras e das palestras. No entanto, era impossível revelar a realidade absoluta através de palavras e discursos, pois, apesar de Ele ter revelado Sua Mente nos Sermões, Seus discípulos não o entenderam. Finalmente, O-Honrado-Pelo-Mundo (um dos muitos nomes do Buda) levantou uma flor e a mostrou aos Seus discípulos para testar sua habilidade em compreender o objetivo ultimo de Seu ensinamento. Apenas Mahakasyapa entendeu a mensagem e a confirmou com um amplo sorriso. Imediatamente, o Buda disse –lhe: “Eu tenho o tesouro do olho do Darma correto, a maravilhosa Mente de Nirvana e a realidade imaterial que agora transmito para você”. Este foi o começo da linhagem Ch’an com seus vinte e sete Patriarcas Indianos e os seis Patriarcas Chineses, e se acrescentamos os Sete Budas da Antiguidade que os precederam o numero total de Budas e Patriarcas conhecidos sobe para quarenta, e daí nossa apresentação dos Quarenta Poemas da Transmissão do Darma.

A Escola do Ensinamento Doutrinário
O que é conhecido com o nome de Escola do Ensinamento Doutrinário, são as instruções dadas pelo Buda através dos Sermões (Sutras) com o propósito de iluminar os Seus discípulos. Como foi mencionado anteriormente, é muito difícil revelar a verdade absoluta a pessoas de capacidades diferentes, e assim, O-Honrado-pelo-Mundo foi obrigado a ensinar um método simples para principiantes, instando-os a se livrar do envolvimento com todo o que viam ao seu redor; enquanto que Ele reservava o ensinamento avançado para aqueles que tinham realizado a não- existência do mundo fenomênico. Por essa razão, Seu ensinamento foi dividido em Hinayana ou “meia palavra”, isto é, verdade incompleta, e Mahayana ou “palavra inteira”, que é a verdade completa. Por exemplo, quando uma pessoa se apegava a seu ego ou alma (isto é, atman em sânscrito) e ao gozo dos prazeres mundanos, o Buda revelava a não-existência do ego ou anãtman para apagar seu conceito de ego. Infelizmente, os adeptos do Hinayana usavam a palavra anãtman nos seus argumentos para silenciar aqueles que se apegavam ao conceito de atman, ego ou alma e discussões intermináveis tem acontecido desde a introdução do termo anãtman no Ocidente. Se nós analisarmos cuidadosamente ambos os termos, chegaremos à conclusão que “atman” significa o ego (alma) existente e “anãtman” significa o ego (alma) não-existente; em outras palavras, os dois extremos de um dos pares de opostos que não tem natureza própria independente.
Por essa razão, no Seu ensinamento Mahayana, o Buda ensinou aos Seus discípulos a abandonar seu apego não apenas à “existência”, mas também à “não-existência; ou seja, tanto à “atman” quanto à “anãtman” de forma a não ficar dependente de nenhum deles. Ele disse no Sutra do Diamante: “Se ate o Darma deve ser posto de lado, quanto mais o Não-Darma!” Assim, nos chegamos ao seguinte:

1) A pessoa comum se apega a ãtman, ou ego, ou alma;
2) O adepto do Hinayana se apega a anãtman, ou não-exitência do ego (da alma);
3) o adepto do Mahayana não se apega nem a atman nem a anãtman.

Depois do Nirvana do Buda, Seus discípulos se espalharam para divulgar o Darma. Como não havia nenhum Darma especifico para ensinar, e como a doutrina consistia em apenas despir cada pessoa deludida de seus sentimentos e paixões , eles tinham que usar todo o que estivesse ao alcance de suas mãos, inclusive velhos costumes, rituais, e crenças praticados em outros lugares para iluminar aqueles que ali viviam. Na Índia, costumes Bramánicos, ritos, símbolos, palavras, etc, foram emprestados para converter as pessoas ao Budismo. No Lamaismo Tibetano, encontramos traços da primitiva Bön, uma religião pré-Budista do Tibet. Na China, onde o Taoísmo e o Confucionismo eram as duas religiões predominantes, muitos termos Taoístas e Confucionistas foram emprestados para explicar o Darma aos chineses. Conseqüentemente, é equivocado identificar o Budismo com qualquer outra religião estrangeira. A imagem do Buda Tibetano abraçado pela Mãe Divina, que pode parecer chocante par a maioria dos leigos, simboliza a integração do par de opostos , o masculino ou positivo e o feminino ou negativo, os dois aspectos de todas as antinomias do Samsãra (o mundo fenomênico representado pelo nascimento e morte), para a realização do todo indivisível no plano da realidade absoluta. Entretanto, esta representação da síntese de todos os dualismos, embora fundamentalmente genuína, não agradou aos refinados eruditos chineses que interpretavam o absoluto a sua própria maneira, com será descrito, mais adiante, na apresentação dos textos Ch’an.

A Terminologia Budista
O vocabulário Budista é extenso e todos os termos cunhados, tanto pelo Buda quanto pelos Seus discípulos, correspondem perfeitamente aos vários estágios do despertar espiritual. É uma verdadeira pena que apenas uns poucos desses termos tenham sido traduzidos para os idiomas ocidentais e novos sinônimos deveriam ser cunhados para enfrentar a ampla variedade de expressões Budistas, se o objetivo for a tradução do Tripitaka por estudiosos ocidentais. A propensão de alguns tradutores modernos para “ocidentalizar” os termos Budistas não deveria ser encorajada, já que esta tarefa só pode ser realizada por aqueles que realmente entendem o Sânscrito e o Chinês.
Mesmo levando em consideração a extensão da terminologia Budista, é impossível descrever com palavras a realidade inconcebível e inexprimível, e para revelar o absoluto aos seus discípulos os mestres Ch’an inventaram o que o upãsaka (um discípulo leigo do sexo masculino, que se propõe a observar as cinco principais regras de moralidade) P’ang Yun chamava de “a linguagem do incriado”.Não há nenhum dicionário chinês que explique esses termos Ch’an cunhados pelos antigos e apenas aqueles estudantes que tenham realizado um grande progresso no treinamento Ch’an podem compreender o significado de cada termo. Todavia, esses termos Ch’an ainda não conseguem expressar a realidade verdadeira, pois no instante em que são expressados na nossa linguagem condicionada , eles passam a ter um significado “inferior”, como dizem os mestres. Por isso, Yun Men dizia a seus discípulos:”Os antigos virtuosos, que passaram suas vidas iluminando os outros, eram instados a usar as palavras e as frases corretas para poder mostra-lhes apenas o caminho. Se você sabe que a coisa real foi propositadamente deixada de lado, com um mínimo de esforço você poderá descobri-lo. Com certeza isto está diretamente relacionado com seu próprio Eu”. Quando Kuei Shan instou Tung Shan a visitar Yun Yen , ele disse-lhe: “Se você pode descobrir a direção do vento pela inclinação da grama, você apreciará seu ensinamento.” Pai Chang disse:”Se os Sutras fossem interpretados literalmente de acordo com o significado da palavra escrita, uma grande injustiça seria cometida com todos os Budas do passado do presente e do futuro. E no entanto, aquele que se desvia dos Sutras apenas uma virgula, fala a linguagem do demônio”.
Embora haja uma ampla gama de expressões, elas eram usadas pelos Budas e pelos mestres no momento certo para iluminar pessoas de diferentes capacidades. Como as pessoas estavam propensas a se apegar aos nomes e aos termos no lugar de olhar dentro de seu verdadeiro significado, o Buda era obrigado a usar diferentes expressões para apagar seus apegos, a despeito de que as novas expressões tinham o mesmo significado daquelas previamente usadas, sendo Seu objetivo livrar as pessoas das palavras vazias para que elas pudessem perceber alem delas. Conseqüentemente, os termos encontrados em todos os Sutras e Sastras, tais como natureza, realidade, Corpo de Buda, Mente de Buda, Darma, Darma Único, Darma Fundamental, Mente, Mente Primordial, Campo da Mente, própria mente, própria natureza, natureza da mente, verdadeira natureza, verdade essencial, etc, têm o mesmo significado e devem ser interpretados como o absoluto inexprimível e inconcebível. O Mahãparinirvãna Sutra diz: “Você deveria abandonar o ensinamento da meia palavra e interpretar corretamente o ensinamento da palavra inteira”. “Meia palavra” significa o ensinamento incompleto e temporário, ou imperfeito Hinayana, e “palavra inteira” significa o ensinamento completo e definitivo, ou o perfeito Mahayana. No ensinamento temporário, as palavras usadas têm um significado relativo; enquanto que no ensinamento definitivo todas as palavras têm um significado absoluto. Por exemplo, no Hinayana a palavra “eu” ou ego -chamado de alma no Ocidente- tem um significado relativo, pois se opõe a “os outros”, ambos os termos sendo apenas um dos infinitos exemplos vazios de dualismo; enquanto que no Mahayana a palavra “Eu” é usada no sentido absoluto. As quatro realidades transcendentais expostas pelo Buda no Mahãparinirvãna Sutra pouco antes de fazer a passagem, Eternidade,Felicidade,Eu e Pureza, têm um significado absoluto.
Quando os Sutras são interpretados corretamente, grandes confusões e discussões desnecessárias e intermináveis são evitadas e todo o ensinamento do Buda, desde o inicio ate o fim, ficará claro para o leitor que será capaz de pegar o fio da meada e tomará consciência da dificuldade que O -Honrado- Pelo- Mundo encontrou para converter pessoas deludidas, de Sua extraordinária paciência para lidar com discípulos obstinados, de Sua relutância de revelar primeiro a verdade relativa e depois a verdade absoluta, e de Sua compaixão sem limites para com todos os seres vivos que Ele prometeu libertar do oceano de sofrimento. Se o tempo desperdiçado na atual divisão arbitrária do insuperável ensinamento em varias escolas hostis contradizendo uma à outra fosse utilizado para o estudo profundo do cânone Budista com o propósito de isolar o fio que une todas as partes, o Darma de Buda, que hoje parece estar em declínio, seria revivido e floresceria para beneficio de toda a humanidade. Felizmente, o Darma Ch’an proporciona um meio admirável para resolver todas as dificuldades que afetam as outras escolas, já que lida exclusivamente com a experiência pessoal da verdade, cujo desenvolvimento encontra-se de perfeito acordo com todos os estágios de realização descritos pelos ensinamentos do Buda no Tripitaka.

O Darma Ch’an
Antes de entrar neste assunto, é necessário saber que Ch’an é a mente e que o Darma Ch’an é o Darma da Mente, ou doutrina da mente. Consiste apenas na realização da própria mente, e quando a mente é conhecida, a própria natureza será percebida e a iluminação será alcançada. A primeira questão é , portanto, a realização da mente. Que nossa mente é permanentemente perturbada pelo nosso pensamento é algo que todo mundo sabe, por isso, para mantê-la na quietude é necessário dar um basta no fluxo dos pensamentos. Este é o passo mais difícil, pois desde tempos imemoriais nós adquirimos o mal habito do pensamento descontrolado que não pode ser detido de repente. Nós “vivemos” porque pensamos e se paramos de pensar iremos a escapar desta vida no Samsãra. Assim, os pensamentos criam todas as ilusões que produzem a vida, e como a vida leva à morte, nós apenas flutuamos à deriva neste oceano de nascimento e morte sem nenhuma perspectiva em vista. Antes de começar a falar em iluminação, para sair desta armadilha, a primeira coisa a fazer é deter todos os pensamentos de modo que a mente volte a sua condição original de quietude. Algumas pessoas demoram apenas uma ou duas semanas para conseguir deter o pensamento enquanto outras levam vários anos.
Na Antiguidade, quando os antigos levantavam ao amanhecer para trabalhar e deitavam ao anoitecer, a vida era muito simples e não tinha as complexidades de hoje em dia. Suas necessidades eram satisfeitas com facilidade e como tinham poucos desejos, suas mentes estavam na quietude. Por essa razão, apenas umas poucas palavras pronunciadas por um mestre iluminado eram suficientes para acordar o discípulo. Quando o Segundo Patriarca pediu a Bodidarma que aquietasse sua mente que estava agitada, o primeiro Patriarca disse: “Me mostre sua mente e eu a acalmarei”. O discípulo chinês respondeu: “Eu não consigo encontrar minha mente”. O mestre indiano declarou: “Então eu acalmei sua mente” Nesse instante, o Segundo Patriarca percebeu a inexistência da mente e se iluminou instantaneamente. Tudo isso aconteceu em apenas dois minutos e parece muito bom para ser verdade.

Os Pré-Requisitos do Treinamento Ch’an
Todos os dispositivos usados na prática do Budismo, tais como adoração da imagem do Buda, prostração, circumbalação, musicas, cânticos, repetição do nome de Amitaba Buda, recitação de Sutras, signos manuais (mudras), repetição de mantras, , controle da respiração, visualização, meditação, kung-an, hua-tou, etc., têm apenas um objetivo: deter todos os pensamentos para a realização da mente. Cada escola tem seu próprio método para deter a mente errante. No que diz respeito a Seita Ch’an, o mestre Hsu Yun disse: “A realização da mente com o objetivo de perceber sua própria natureza e alcançar a Budeidade, não tem nada a ver com meditar ou não meditar. O método Ch’an consiste em colocar um fim a todos os pensamentos de forma que a mente possa se acalmar e a própria natureza possa ser percebida”. Entretanto, na pratica Ch’an a meditação é considerada a forma ortodoxa de controle do corpo e da mente. Normalmente, no começo da prática é muito difícil deter o fluxo de pensamentos, já que, assim que se consegue apagar um pensamento, um novo pensamento aparece para ocupar o seu lugar e quanto mais se tenta detê-los, mais se é atacado por eles por todos os lados. O praticante deve ter, entretanto, uma grande paciência para lidar com eles. No momento em que ele começar a encontrar as primeiras dificuldades em lidar com os pensamentos crescentes, ele terá uma clara indicação de que seus esforços para controlá-los estão surtindo efeito, já que, sem sua prática, ele continuaria dando curso a eles sem ter a menor consciência disso. Sua obstinada determinação de controlar os pensamentos irá, em breve, render seus frutos, a despeito das dificuldades que ele possa encontrar no começo, que serão de curta duração e irão sucumbir diante de sua forte determinação de ganhar a batalha.
Muitos livros foram escritos sobre meditação e os praticantes mais ocupados que não dispõem de tempo livre para se dedicar a longas meditações , deveriam encontrar um meio de controlar os pensamentos pelo menos uma ou duas vezes ao dia, enquanto andam, ficam de pé, estão sentados ou reclinados. Alem do método ortodoxo de sentar-se com as pernas cruzadas em meditação, o melhor momento é aquele que precede ao ato de dormir quando se está na cama. Sem se preocupar com a posição correta do corpo, a pessoa pode fechar os olhos para ver realmente o aparecimento do pensamento e pegá-lo com a atenção de um gato prestes a pegar o rato. Assim que ele é percebido, deve-se investigar de onde aparece e para onde vai, e mesmo antes de realizar que não tem nem cabeça nem rabo, ele se desvanece como uma ilusão ou uma borbulha. Depois de “caçar” dois ou três pensamentos desta forma, eles se tornam tão raros que a mente fica automaticamente calma e a pessoa cai no sono profundo. A repetição desta prática varias noites seguidas irá garantir a rápida detenção do fluxo de pensamentos, seguido de um sono profundo livre de sonhos , um bom sinal de que a mente encontra-se no estado de quietude. Este método de pinçar os pensamentos emergentes foi ensinado pelo mestre Han Shan, no século XVI, e nós recomendamos veementemente os leitores a praticá-lo enquanto permanecem deitados na cama antes de dormir. Requer apenas de quinze a vinte minutos cada noite e pode ser praticado todas as noites sem o menor problema. Assim, passo a passo, a pessoa será capaz de pôr um fim ao permanente fluxo de pensamentos aonde quer que ela esteja. Este é também o método mais seguro para curar a insônia e para desfrutar de um verdadeiro descanso após longas horas de trabalho. Obviamente deve se abrir mão de tudo o que pode excitar os órgãos dos sentidos , tal como comidas pesadas, bebidas alcoólicas, literatura pornográfica, maus hábitos, divertimentos questionáveis, etc., para garantir um bom estado da mente.

Disciplina e Moralidade
Uma mente disciplinada é de uma importância fundamental para o sucesso do autocultivo, já que se se permite que a mente vague pelo mundo à procura de estímulos exteriores, nunca poderá ser colocada sob controle. A leitura e a correta interpretação dos Sutras, especialmente do Sutra do Diamante, do Sutra do Altar (do Sexto Patriarca) e dos textos Ch’an, permitirá que o praticante sério renuncie aos apegos que ele guarda como tesouros, já que quando ele perceber a natureza ilusória e impermanente do mundo fenomênico, ele irá voltar sua atenção para a realidade verdadeira que ele poderá levar consigo ate o final de sua transmigração. Para conseguir realizar o Si-Mesmo a disciplina deverá ser estrita, já que o menor desvio poderá significar a diferença entre o sofrimento e a bem-aventurança, entre a delusão e a iluminação e entre a impermanência e a eternidade.
É muito lamentável que alguns comentaristas modernos, que não compreendem a disciplina Ch’an, tenham elaborado a absurda teoria de que os sutras, os sastras, a disciplina e a moralidade podem ser dispensados na procura da verdade. Nada é tão errado e prejudicial do que essa desculpa baseada na premissa de que o absoluto não admite dualismos, e já que a disciplina e a indisciplina, e a moralidade e a imoralidade são os extremos de dois pares de opostos, não há lugar para eles. Mas, será que nós estamos tão iluminados que não há mais necessidade de treinamento espiritual? Se esse não for o caso, nós ainda precisamos apagar nossas delusões antes de poder falar do absoluto e essa desculpa, alem de não fazer o menor sentido, pode confundir os principiantes. Yung Chia disse na sua “Canção da Iluminação:” Se você quer evitar o produto do inferno chamado carma não difame a Roda da Lei do Tatagãta “.
É verdade que quando um discípulo começa seu treinamento Ch’an, seu mestre geralmente proíbe a leitura dos Sutras de forma que sua atenção não fique dividida e assim poder atingir a unidade da mente para a percepção da própria natureza e alcançar a iluminação. Todavia, assim que se ilumina, o discípulo imediatamente lê o Tripitaka (o Cânone Budista composto do Vinaya ou Regras de Disciplina e Moralidade; os Sutras ou Sermões do Buda; e Sastras ou Comentários sobre os Sutras), antes de começar seu trabalho como Bodisatva divulgando o Darma. Podemos facilmente imaginar o embaraço de um mestre que não sabe nada sobre o ensinamento dos Sutras dado pelo Buda e que pretende ensiná-los aos outros. Também é verdade que Hui Neng era analfabeto, mas ele não deixava de interpretar corretamente nenhuma passagem dos Sutras citada pelos seus discípulos. Mas, quantos mestres analfabetos existem na linhagem Ch’an? Podemos ter a pretensão de ter alcançado o grau de realização do Sexto Patriarca e agora acharmos que podemos jogar fora todos os Sutras e Sãstras? Ate Hui Neng obrigava seus discípulos a recitar o Sutra do Diamante.
Com relação à moralidade, está baseada na compaixão universal, e sem a pratica da moralidade , nós nunca teremos a chance de ouvir o Darma correto exposto pelo Buda. O Sutra do Diamante diz: “Subuti, não fala assim. No período de 500 anos após a ultima passagem do Tatâgata, haverá aqueles que observem ‘as regras de moralidade’ e realizem boas ações o que resultará em benções. Essas pessoas serão capazes de desenvolver uma fé incondicional em estas frases que eles considerarão como sendo o corpo da verdade. Você deveria saber que eles não terão plantado boas raízes em apenas uma, dois, três, quatro ou cinco Terras do Buda. Após ouvir estas frases aparecerá em suas mentes um único pensamento de pura fé. Subuti, o Tatâgata sabe e vê tudo; estes seres vivos irão assim adquirir imensuráveis méritos. Por que? Porque eles terão apagado as falsas noções de um ego (uma alma), uma personalidade (uma pessoa), um ser (um ser sensciente), e uma vida (um tempo), de Darma e de Não-Darma” Como uma boa causa leva a um bom efeito, e como uma causa ruim leva a um efeito ruim, aquele que vira as costas para a moralidade estará riscado a ser imoral, mesmo que ele não saiba disso, e são numerosos os casos de praticantes que regrediram no seu autocultivo e estão listados detalhadamente no Surangama Sutra. Por esta razão, Lin Ch’i aconselhava seus discípulos a interpretar o Darma corretamente e a não se deixar enganar pelos outros. O praticante do Ch’an deve saber no começo do seu treinamento se ele realmente possui compaixão na sua própria natureza. Esta é a questão crucial que um estudante sério do Ch’an deveria perguntar a si mesmo, uma vez que sem compaixão, sua pratica será em vão. Nós sabemos que de acordo com o Buda e os mestres iluminados, cada ser humano possui dentro dele a própria natureza que é perfeita e sobre cujas características, quatro são chamadas as quatro incomensuráveis: bondade, compaixão, alegria e renuncia. Assim, antes de considerar se o ensinamento está correto, nós devemos descobrir essa compaixão inerente em nós, e não há nada melhor do que uma cuidadosa investigação sobre ela na nossa meditação, já que o quer que seja falado nos sutras sobre ela, é apenas o significado das palavras escritas e nunca foi experimentada por nós pessoalmente. Será suficiente apenas uma meditação para descobrir essa compaixão e nós deveríamos nos concentrar nela ate a exclusão de todos os outros pensamentos e tentar averiguar se existe de fato pelo menos uma gota dela dentro de nós. Devemos apagar todos os sentimentos humanos e nos concentrar em aqueles que menos gostamos, em primeiro lugar. Devemos perguntar a nós mesmos porque essas pessoas se comprazem em prejudicar os outros e iremos concluir que como nós também somos egoístas, não temos o direito de culpar pessoas que como nós também estão deludidas, sendo a única diferença que nossa ignorância tal vez seja menor do que a delas. Se a elas fossem dados um bom ambiente e uma chance de ouvir o Darma , elas certamente mudariam seus hábitos e tal vez iriam se tornar melhores do que nós mesmos. Finalmente iremos descobrir que nós somos a única parte que merece toda a culpa por nosso egoísmo, visto que elas são apenas pessoas ilusórias de quem nós desgostamos antes e que só existem por causa de nossa ignorância. Assim, no lugar de ficar procurando as faltas nos outros , sentiremos pena de nós mesmos e derramaremos lágrimas por não entender o ensinamento do Buda. Hui Neng disse: “Ilustrados amigos, sua própria natureza é grande porque contem todas as coisas. Como todas as coisas estão contidas dentro dela, se todas as pessoas boas e todas as pessoas ruins não são nem gostadas nem desgostadas, inclusive sem ser contaminada por eles, a mente, que é como o espaço, é chamada a grande mente”. Esta é a mente universal que,se viramos as costas para a disciplina e a moralidade, nunca alcançaremos.

As Técnicas Ch’an
Somente depois que a mente for colocada sob controle é que pode iniciar-se o treinamento Ch’an. A purificação da mente é a causa do despertar da potencialidade adormecida que existe em cada um de nós - a qual não pode ser alcançada pelos ensinamentos doutrinários devido às limitações da palavra - e que quando desenvolvida plenamente é capaz de apreender a verdade absoluta. Por essa razão, os adeptos da Seita Ch’an são capazes de alcançar a iluminação em apenas uma existência enquanto que os seguidores das diversas escolas do ensinamento doutrinário demoram várias transmigrações para alcançar os mesmos resultados.


Os 40 Poemas da Transmissão:
Apontando Direto para a Mente

Nos tempos antigos os homens viviam de uma forma simples e não eram tão apegados como o são hoje em dia. Consequentemente, suas mentes permaneciam na quietude e umas poucas palavras eram suficientes para acordar a potencialidade interior capaz de apreender a realidade.
Os quarenta Poemas (Gathas) nos dão uma idéia de como o Darma era ensinado, apreendido e transmitido. Os mestres antigos usavam pouquíssimos termos técnicos para provocar o despertar dos seus discípulos. Eles apenas apontavam direto para a mente dos discípulos e os estudantes, tendo uma fé ilimitada nos ensinamentos, imediatamente apreendiam o fim último sem dar lugar a pensamentos ou discriminações.
Portanto, não era difícil para o instrutor apagar o apego do seu aluno, não somente em relação ao mundo dos fenômenos em torno dele como também em relação às manifestações mais sutis do ego e das coisas (darma) que permanecem ocultas e não são facilmente detectáveis. Mesmo os termos mais  preciosos, como o Buda, o Darma e a Sanga, podiam ser facilmente erradicados de forma que o estudante percebesse seu todo indivisível que não poderia ser novamente dividido em sujeito e objeto - a causa da separação que cria todas as delusões e complicações do Samsara.
Quando dizemos que adoramos o Buda, praticamos o Darma e reverenciamos a Sanga já estamos errados porque inadvertidamente dividimos nossa própria-natureza perfeita no sujeito que adora, pratica e reverencia e no objeto adorado, praticado e reverenciado, sem perceber que nós já somos, pois é inerente a nós, a própria-natureza do Buda, do Darma e da Sanga ou a Gema Tríplice do Eu.
A palavra darma tem dois significados: (1) Darma: verdade, lei ou doutrina; e, (2) darma: todas as coisas, qualquer coisa grande ou pequena, visível ou invisível, real ou irreal, concreta ou abstrata. Se nós realizarmos a mesmice do numinoso e do fenomênico, isto é, a unidade de tudo, esse Darma nada mais é do que uma parte integral de nossa própria-natureza perfeita.
Por outro lado, se nós o vislumbramos como algo que existe independentemente de nossa própria-natureza será o darma ou uma das infinitas coisas, isto é, uma matéria separada de nós e ali estaremos dividindo nosso Eu em sujeito e objeto novamente. Por essa razão, Sakyamuni Buda disse em seu poema da transmissão do Darma para Mahakashyapa:

“O Darma fundamental do Darma não tem nenhum Darma;
E o Darma do Não-Darma também é Darma.
Agora que o Darma do Não-Darma é transmitido;
Quando foi que houve um Darma?”

Assim, todos os traços do Darma são apagados para revelar o absoluto que não é Darma nem Não-Darma, pois está além de todos os dualismos.
Cada poema (gatha) da transmissão foi recitado quando o Darma da Mente foi transmitido para o seu respectivo sucessor, pelos Sete Budas da Antiguidade, os Vinte e Sete Patriarcas da Índia e os Seis Patriarcas da China da linhagem Ch’an. O Darma por eles ensinado era muito simples porque apontava direto para a mente do discípulo que não tinha nenhuma dificuldade em realizá-lo.

A Técnica do Kung-an das Cinco Seitas Ch’an
Após o Sexto Patriarca da China, que teve quarenta e três sucessores do Darma, a Seita Ch’an se dividiu em duas correntes principais lideradas por Huai Jang da montanha Nan Yo e Hsing Szu da montanha Ch’ing Yuan, respectivamente.
O sucessor de Huai Jang foi o grande Ma Tsu que transmitiu o Darma para Pai Chang, cujos discípulos principais foram Kuei Shan e Huang Po. Kuei Shan e seu discípulo Yang Shan fundaram a seita Kuei Yang (Ikyo Zen) e Huang Po foi sucedido por Lin Chi, o fundador da seita Lin Chi (Rinzai Zen).
Hsing Szu transmitiu o Darma para Shih T’ou, cujos sucessores, Yo Shan e Tao Wu, o transmitiram para Yun Yen e Lung T’an, respectivamente. Yun Yen foi sucedido por Tung Shan que, junto com o discípulo Ts’ao Shan, fundou a seita Tung Ts’ao (Soto Zen). Lung T’an transmitiu o Darma para Teh Shan que foi sucedido por Hsueh Feng. Este último, o transmitiu para Yun Men que fundou a seita Yun Men (Ummon Zen) e para Hsuan Sha. Este último, o transmitiu para Lo Han, cujo sucessor Wen I fundou a seita Fa Yen (Hogen Zen).
Após o Sexto Patriarca, quando as palavras simples e os poemas se tornaram menos apropriados para revelar a mente, a técnica do kung-an foi inventada para substituí-los. Kung-an significa, literalmente: documento oficial; dossiê; leis e regulamentos criados para manter a lei e a ordem, que nenhum cidadão pode transgredir. Assim, o silêncio, as frases, os gritos, as gargalhadas, os gestos, as pancadas, os beliscões, as chibatadas, etc – as causas contribuintes usadas para apontar direto para a mente - são chamados kung-an.
Essa técnica, desenvolvida por Ma Tsu, é hoje conhecida como o método ta chi e ta yung, ou grande potencialidade e grande função, respectivamente. Por grande potencialidade entende-se o despertar da potencialidade adormecida inerente a cada ser humano que tem em vista desenvolvê-la completamente e por grande função entende-se o uso apropriado dos kung-an na primeira oportunidade favorável, permitindo a união da potencialidade totalmente desenvolvida com a verdade. Ademais, esta técnica também inclui o que é conhecido como chao e yung, que significam, respectivamente, a provação da potencialidade desenvolvida pelo estudante e o uso da função iluminadora, que provoca o despertar do estudante.
Embora as Cinco Seitas tivessem o mesmo objetivo, isto é, a realização da mente para a percepção da própria-natureza e a obtenção da iluminação, cada seita desenvolveu sua própria técnica de ensinamento: a Kuei Yang dando ênfase ao corpo e à função; a Lin Chi com os gritos, a sabedoria luminosa, a função salvadora e os Três Portais Profundos, cada um com três Estágios ou Estados Vitais; a Ts’ao Tung com as Cinco Posições do Príncipe e do Ministro; a Yun Men com seus bolos, suas respostas de uma palavra, seus Três Portais e suas palavras aparentemente ofensivas para apagar as discriminações de seus seguidores; e, a seita Fa Yen com sua doutrina de que “os Três Mundos não são senão a mente e que todas as coisas são a consciência”.
É interessante saber como a potencialidade adormecida, inerente a cada ser humano, pode ser despertada e estimulada ao máximo através da união com o absoluto. Isto é alcançado depois que todos os pensamentos, bons ou maus, foram detidos de forma a realizar a unidade da mente. Quando a mente é reduzida à impotência a sua função cessa e seu estado é comparado nos textos Ch’an a um pedaço de madeira apodrecida, a um crânio inconsciente, a um cavalo de madeira, a uma moça de pedra e a um incensário num templo deserto. Como a mente é apenas um aspecto ilusório da própria-natureza em dependência, esse aspecto está agora minguando e a ponto de desaparecer completamente para retornar a sua essência brilhante. Nesse momento qualquer um dos kung-an ou qualquer ocorrência insignificante, tal como a visão da própria imagem refletida na água ou o som de uma vara de bambu partindo, será percebida, não pela mente em extinção, mas pela própria-natureza que agora volta a funcionar normalmente. Essa é a causa da iluminação súbita.
Talvez o mais famoso kung-an seja “wu”, que não tem nada de especial ou extraordinário já que funciona exatamente como qualquer outro kung-an. Um monge perguntou a Chao Chou: O cão possui a natureza de Buda? E o mestre iluminado respondeu: “wu”, que significa, entre outras coisas, não, em português. Depois de ouvir esse wu, qualquer monge Ch’an perguntar-se-ia: “O Buda disse que os animais possuem a natureza de Buda; por que então o mestre Chao Chou, respondeu que o cão não a possuía?” Essa pergunta permanecerá enquanto o monge não encontrar uma resposta satisfatória e dia e noite ele perguntar-se-á sobre isso sem interrupção, esquecendo-se completamente de todos os outros atos da vida. Concentrando-se unicamente nesse wu, sem nunca se separar dele, ele finalmente alcançará a unidade da mente, que assim despida de todas suas atividades será reduzida à impotência e desaparecerá, mais cedo ou mais tarde, deixando seu lugar para a própria-natureza que será capaz de reassumir sua função normal. Quando a própria-natureza entra em contato com qualquer fator externo cumprirá a função de percebê-lo e reassumirá sua condição essencial que nós chamamos de iluminação. Após Chao-Chou, o termo “wu” também passou a significar “iluminação”.

A Técnica do Hua-tou
Com o passar do tempo a mente humana foi-se envolvendo cada vez mais com as novas ilusões criadas pelo avanço material da civilização e sua condição foi ficando cada vez mais difícil, tornando-se incapaz de provocar o despertar espiritual. Desta forma, os mestres antigos foram obrigados a inventar a técnica hua-tou que pode levar aos mesmos resultados alcançados pelos kung-an.
Hua-tou significa “a cabeça de uma palavra”, considerando que aqui “palavra” significa o pensamento que agita a mente. Assim, hua-tou é a mente antes de ser agitada por um pensamento ou a mente na sua condição de quietude. Esta técnica consiste no fechamento dos seis órgãos dos sentidos de forma a impedir o contato com os estímulos exteriores através da ocupação da mente com a própria mente ou “virando a luz para o interior a fim de iluminar o Eu”, como disse o mestre. Essa própria concentração está errada mas é usada como um artifício para deter o fluxo permanente dos pensamentos. Com o passar do tempo, essa concentração irá, como os kung-an, congelar a mente e isolá-la de todos os estímulos exteriores alcançando a unidade. O praticante permanece absorto no hua-tou formando assim um bloco homogêneo que nenhum estímulo exterior pode penetrar. Ele ficará livre de todos os desejos mundanos e não mais sentirá o calor do verão nem o frio do inverno. Alguns praticantes poderão inclusive abrir mão do hábito de dormir a noite e “suas costelas não mais tocarão os colchões de suas camas” como relatam os textos Ch’an. Eles caminharão no meio da multidão no mercado sem notar a presença de uma única pessoa, farão suas refeições sem a sensação de ter engolido um único grão de arroz e vestirão seus robes sem sentirem o forro de suas roupas (No Centro de Treinamento Ch’an recomenda-se o uso do hua-tou: Pára!!!).
Como foi dito anteriormente, a morte da mente leva a ressurreição da própria-natureza que será capaz de funcionar sem nenhum outro obstáculo. Quando a própria-natureza entra em contato com o som ou com a forma, desempenhará sua função não-discriminadora de escutar ou olhar. Esse resultado final é idêntico ao obtido com o kung-an.
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O Ato do Despertar
O ato do despertar é chamado wu em chinês e satori em japonês. De acordo com os mestres antigos há dezoito wu maiores e incontáveis wu menores antes da iluminação completa. Isto não significa que levará necessariamente um longo período de tempo alcançar todos os wu maiores e menores, pois isto depende de vários fatores, dentre os quais, o estímulo ou o embotamento da potencialidade desenvolvida e a atenção ou displicência do praticante no seu treinamento. Neste último caso, a iluminação final pode ser alcançada num piscar de olhos como aconteceu com Hui Neng depois de ouvir uma frase citada do Sutra do Diamante pelo Quinto Patriarca da China.
Não devemos confundir o despertar com o estado experimentado ao “entrar na correnteza” onde o praticante que alcançou apenas o desligamento dos estímulos exteriores simplesmente sente que seu corpo está leve como o ar e que ele e tudo o que o circunda é uma imóvel massa brilhante. Ele terá que avançar um passo à frente para alcançar o estágio de ‘”ressurreição para o real”, a terceira das Cinco Posições da seita Ts’ao Tung (Soto Zen).


OS QUARENTA POEMAS (GATHAS)DA TRANSMISSÃO
(Extraído da Transmissão da Lâmpada - Ching Te Ch’uan Teng Lu)


Os Sete Budas da Antiguidade

I
Vipashim, o 998º Buda da Era Gloriosa:
O corpo nasce do nada;
Um sonho, produto de uma ilusão.
Como a mente ilusória e o pensamento não existem,
Quão desprovidos de natureza são o bem e o mal!

II
Shikhin, o 999º Buda de Era Gloriosa:
Bons Darmas e maus carmas aparecem,
Porém ambos são ilusórios.
O corpo é como a espuma e a mente é como o vento;
A ilusão não tem base nem realidade.

III
Vishvabhu, o 1000º Buda da Era Gloriosa:
Quando a mente incriada está confinada no corpo
Interage com os objetos e só existe por causa deles.
Quando os objetos desaparecem a mente também desaparece;
o bem e o mal aparecem e desaparecem como as ilusões.

IV
Krakucchanda, o 1º Buda da Era Virtuosa:
Ver o corpo como irreal é ver o Corpo do Buda;
Reconhecer a mente como uma ilusão é reconhecer a Mente do Buda.
Aquele que percebe que o corpo e a mente são irreais;
Esse, como poderia ser diferente do Buda?

V
Kanakamuni, o 2º Buda da Era Virtuosa:
O Corpo Real do Buda ninguém percebe;
Não existe nenhum outro Buda para aquele que conhece a si mesmo.
Quando o mestre percebe que o bem e o mal são desprovidos de Natureza,
Vive tranqüilo e não teme o nascimento nem a morte.

VI
Kashyapa, o 3º Buda da Era Virtuosa:
Pura e límpida é a Natureza de todos os seres vivos;
Como nunca foi criada não pode ser destruída.
O corpo e a mente nascem de uma ilusão;
Nesta sombra mutante não há bem nem mal.

VII
Shakyamuni, o 4º Buda da Era Virtuosa:
O Darma fundamental do Darma não tem nenhum Darma;
O Darma do Não-Darma também é Darma.
Agora que o Darma do Não-Darma é transmitido;
Quando foi que houve um Darma?

Os Vinte e Sete Patriarcas da Índia

VIII
Mahakashapa, o 1º Patriarca da Índia:
O Darma fundamental de todos os Darmas
Está além dos Darmas falsos e reais.
Por que no Darma Único deveria
Haver um Darma e um Não-Darma?

IX
Ananda, o 2º Patriarca da Índia:
No começo havia um Darma a ser transmitido;
Depois de transmitido tornou-se um Não-Darma.
Se cada ser senciente realizasse a Própria-Natureza
Não restaria nem um Não-Darma sequer.

X
Shanakavasa, o 3º Patriarca da Índia:
O Darma e a Mente não têm realidade,
Porque não há Mente nem Darma.
Quando o Darma da Mente é revelado,
Esse Darma não é o Darma da Mente.

XI
Upagupta, o 4º Patriarca da Índia:
A Mente é a Mente Primordial
Que é desprovida de Darma.
Quando o Darma e a mente primordial existem;
Ambos, a mente primordial e o Darma, são falsos.

XII
Dhrtaka, o 5º Patriarca da Índia.
Quando o Darma da Mente Primordial é realizado
Nem o Darma nem o Não-Darma permanecem.
Depois da iluminação é como antes da iluminação,
Porque não há Mente nem Darma.

XIII
Miccaka, o 6º Patriarca da Índia:
Não há mente nem realização
Porque o que pode ser realizado não é o Darma.
Somente quando se percebe que a mente é irreal
É que o Darma do todas as Mentes é realizado.

XIV
Vasumitra, o 7º Patriarca da Índia:
A mente e o espaço celeste são a mesma coisa;
O Darma, espaço ilimitado, é agora revelado.
Quando o espaço é realizado como tal
Nenhum Darma permanece, falso ou real.

XV
Budhanandi, o 8º Patriarca da Índia:
O espaço e o Darma da Mente
Não tem nada dentro nem tem nada fora.
Quando o espaço é realizado,
O princípio da Qüididade é apreendido.

XVI
Budhamitra, o 9º Patriarca da Índia:
A Verdade Essencial não tem nome
Mas é por causa do nome que ela é agora revelada.
Aquele que realize o Darma da Verdade saberá
Que não se trata de verdades nem de mentiras.

XVII
Parshva, o 10º Patriarca da Índia:
O Corpo Real é a realidade existente por si mesma
E é por causa dela que a lei fundamental é agora revelada.
A realização do Darma da Realidade
Está além das mutações e do imutável.

XVIII
Punyayashas, o 11º Patriarca da Índia:
A delusão e a iluminação ocultam e revelam
E tal como a luz e a escuridão dependem uma da outra.
O Darma que eu agora transmito
Não é um nem dois.

XIX
Ashvaghosa, o 12º Patriarca da Índia:
Ocultando e revelando eles próprios são o Darma;
O essencial da luz e da escuridão é não-dual.
O Dharma da iluminação que eu agora transmito
Não pode ser aceite nem rejeitado.

XX
Kapimala, o 13º Patriarca da Índia:
O Darma que não oculta nem revela
Mostra o Campo da Realidade.
Realizar esse Darma
Não se trata de ignorância nem de sabedoria.

XXI
Nagarjuna, o 14º Patriarca da Índia:
Para explicar o Darma que oculta e que revela
O princípio da libertação é agora revelado.
De acordo com esse princípio nenhuma Mente é realizada
E não há alegria nem tristeza.

XXII
Kanadeva, o 15º Patriarca da Índia:
A você que agora recebe o Darma
O principio da libertação é revelado.
De acordo com este principio o Darma não realiza nada
Porque está além do fim e nunca teve começo.

XXIII
Rahulata, o 16º Patriarca da Índia:
O Darma não realiza uma única coisa;
Não pode ser aceite nem rejeitado;
Está além do que é e do que não é;
Não tem nada dentro nem tem nada fora.

XXIV
Sanghanandi, o 17º Patriarca da Índia:
O Campo da Mente nunca foi criado;
Esse Campo Primordial é produto de uma causa contribuinte.
A causa contribuinte e a semente não se impedem mutuamente,
Assim como o fruto e a flor não se obstruem mutuamente.

XXV
Gayashata, o 18º Patriarca da Índia:
A semente existente por si-mesma e o Campo da Mente
Produzem o broto através de uma causa contribuinte.
A causa contribuinte e o broto não se impedem mutuamente,
Porque aquilo que é produzido não é produzível.

XXVI
Kumarata, o 19º Patriarca da Índia:
O essencial da Própria-Natureza nunca foi criado,
É isso que nós ensinamos àqueles que procuram a verdade.
Já que o Darma não nos oferece nenhuma retribuição;
Por que pensar de uma ou outra forma em relação a ele.

XXVII
Jayata, o 20º Patriarca da Índia:
União instantânea com o incriado
É assim que se realiza o Darma da natureza.
Aqueles que são capazes de realizar isto
Realizam a unidade do relativo e do absoluto.

XXVIII
Vasubandhu, o 21º Patriarca da Índia:
Bolhas e ilusões são o onipresente;
Por que isto não pode ser realizado?
O Darma onipresente neste mundo de mutações
Não está presente agora nem estava presente no passado.

XXIX
Manorhita, o 22º Patriarca da Índia:
Nas suas mutações a mente segue o exterior,
Enquanto que a realidade permanece adormecida, oculta pelas mutações.
Todavia, através delas pode encontrar-se a Própria-Natureza,
Que está além de todas as alegrias e tristezas

XXX
Haklena, o 23º Patriarca da Índia:
Somente quando a Natureza da Mente é realizada
Pode dizer-se que a Mente não pode ser concebida.
Nada pode ser realizado
Já que se se realiza não há consciência disso.

XXXI
Aryasimha, o 24º Patriarca da Índia:
Quando se procura a consciência
Encontra-se a mente.
Como a mente é a consciência
O Darma só é encontrado por aquele que está consciente.

XXXII
Basiasita, o 25º Patriarca da Índia:
O mestre fala da consciência
Além do certo e do errado.
Eu tenho realizado a Verdadeira Natureza
Além de todas as verdades e de aquilo que jaz por trás.

XXXIII
Punyamitra, o 26º Patriarca da Índia:
A Verdadeira Natureza jaz no Campo da Mente
E não tem cabeça nem rabo.
Manifesta-se para atender as necessidades dos seres vivos;
Por falta de uma expressão melhor a chamamos de Sabedoria.

XXXIV
Prajnatara, o 27º Patriarca da Índia:
O Campo da Mente é o canteiro onde todas as sementes são plantadas;
Como as coisas realmente são pode ser deduzido pelas suas aparências.
Quando o fruto está maduro se alcança a iluminação;
Quando a flor floresce se vê o Universo.

Os Seis Patriarcas da China

XXXV
Bodidarma, o 1º Patriarca da China:
Meu propósito ao vir para este país
Foi transmitir o Darma e libertar todos os seres.
A flor de cinco pétalas
Não pode deixar de florescer.

XXXVI
Hui Kó, 2º Patriarca da China:
No canteiro de sua mente
O Darma cultiva flores.
E no entanto, não há nenhuma semente
Nem nenhuma flor.

XXXVII
Seng T’san, o 3º Patriarca da China:
O plantio de sementes requer um campo causal.
Onde as flores crescerão.
Se ninguém planta
Não haverá campo nem flores.

XXXVIII
Tao Hsin, o 4º Patriarca da China:
O crescimento está latente na semente
Que brota quando é plantada no campo causal.
A Grande Causa une-se com a Natureza;
Porém, na época do crescimento nada cresce.

XXXIX
Hung Jen, o 5º Patriarca da China:
A semente plantada por um ser senciente
No campo causal logo renderá o fruto.
Sem sensitividade não há semente
E nenhum fruto sem natureza.

XL
Hui Neng, o 6º Patriarca da China:
O campo da mente contém as sementes
Que brotam quando cai a chuva-que-todo-permeia.
A flor-sabedoria da iluminação súbita
Não pode deixar de dar o fruto do Bodi.

* INTRODUÇÃO AO TREINAMENTO CH'AN

Tradução para o português de Wu-ming (1947-    )

Comentário do Mestre Lu K'uan Yu (1898-1978)

Introdução
O ideograma chinês Ch’an (ou Zen, em japonês) é o sinônimo da palavra dyãna em sânscrito, que significa meditação, uma das seis perfeições (Paramitã). Foi erroneamente usado para designar a transmissão da mente que o Tatâgata legou para Mahakasyapa e que o vigésimo oitavo Patriarca, Bodidarma, introduziu na China. Essa transmissão estava fora dos expedientes usados pelo Honrado-Pelo-Mundo (um dos muitos nomes de Buda) quando Ele expunha os sutras, e visava apontar direto para a mente para a percepção da própria-natureza e a obtenção da Budeidade.
Assim, Ch’an é o todo abrangente, enquanto que dyãna-paramitã é apenas uma das seis formas de salvação. A diferença fundamental entre a Seita Ch’an e as outras escolas é que, enquanto a primeira visa a iluminação instantânea, as outras procuram passar por sucessivos estágios de santidade até alcançar a iluminação. Por iluminação, os mestres Ch’an não se referiam a nada menos do que alcançar o próprio Darmakaya (o corpo espiritual, invisível para todos aqueles que na alcançaram a Budeidade).
Os comentaristas modernos confundiram-se na interpretação do Ch’an ou Zen e agora ouvimos falar sobre caligrafia Zen, pintura Zen, música Zen e arco e flecha Zen. Se um mestre fosse instado a confirmar a natureza Zen de uma caligrafia ou uma pintura, ele diria: “A espada sumiu há muito tempo”. É conveniente citar aqui a seguinte passagem de “Os ditados de Chung Feng” (Chung Feng Kuang Lu):

“O que é Ch’an? Ch’an é o nome da Mente. O que é a Mente? A Mente é a substância (essência) do Ch’an. Bodidarma veio do Oeste e apenas apontou direto para a mente do homem. No começo, o termo Ch’an não era usado, mas o resultado de apontar direto para a mente foi o conseqüente despertar dos seguidores da Seita. Nas suas perguntas e respostas, aquilo que não tinha nome era chamado de Ch’an apenas por conveniência. Todavia, o Ch’an não pode ser apreendido através do estudo ou por acaso. Quando a própria-mente é realizada, tanto a palavra ou o silêncio, como o movimento ou a quietude, é o inesperado Ch’an. No momento desse inesperado Ch’an, a Mente automaticamente manifesta-se por si mesma. Assim, sabemos que o Ch’an não difere da Mente e que a Mente não difere do Ch’an. O Ch’an e a Mente são, conseqüentemente, dois nomes da mesma substância.”

A finalidade da Seita Ch’an é despir a mente de todas as paixões e apegos com o propósito de libertá-la do mundo fenomênico, de forma que a própria-natureza possa retornar ao seu estado normal sem impedimento. Em vista disso, os mestres Ch’an raramente usavam aqueles termos Budistas encontrados em todos os sutras, já que os homens estão sempre propensos a apegar-se à terminologia que, na sua procura por mais ensinamento e maior sabedoria, só serve para estimular as faculdades do pensamento e intensificar as discriminações. Os mestres orientavam seus discípulos a evitar a procura da iluminação e a Budeidade, porque a simples idéia da iluminação e da Budeidade dava lugar ao conceito dual de realidade do ego e realidade do Darma, o que dividia seu todo indivisível em sujeito e objeto, a causa de sua ilusão e sofrimento. Essa é a razão pela qual os termos comumente encontrados nos sutras são raramente encontrados nos textos Ch’an, e por isso parecem estranhos e incompreensíveis mesmo para os Budistas das outras escolas. Esses textos são tão obscuros e incompreensíveis como as Profecias de Nostradamus e, freqüentemente, leitores confusos os colocavam de lado para sempre após ler umas poucas páginas. Nenhum mestre esclarecido se dava ao trabalho de dar uma explicação clara ou um comentário compreensivo dos ditados de seus iluminados predecessores. Mesmo quando citavam os ditados antigos, ao dar as instruções aos seus próprios discípulos, seus comentários, que variavam de uma frase a uma stanza (poema), eram igualmente obscuros e confusos para os principiantes.
Alguns filósofos modernos têm tentado estabelecer uma ligação entre o Ch’an e seus próprios conceitos e ainda tem sustentado que os mestres antigos usavam palavras sem nenhum sentido, gritos e outras gesticulações igualmente desconexas para iluminar seus discípulos. Obviamente, essas palavras, gritos, gargalhadas, etc., parecem sem sentido para uma mente discriminadora; mas assim que pára de discriminar, achará que estão cheios de sentido. Por exemplo, os gritos de Lin Chi tinham quatro significados diferentes, cada um apropriado para cada situação. Da mesma forma, uma gargalhada ou a amostra das duas mãos bem abertas são gestos cheios de significado. Quando se usa a mente discriminadora para comentar os ditados antigos, ver-se-á o dedo no lugar da lua que está sendo apontada.
Assim, nós não podemos culpar esses mestres pelos seus ditados aparentemente obscuros e abstrusos, porque se usassem as terminologias cunhadas pela inteligência humana condicionada, seus discípulos ir-se-iam apegar a elas, desviando-se assim do curso de treinamento normal. Quando o monge perguntou a Yun Men: “O que é Buda?”, o mestre sabia que a mente do questionador estava agitada pela palavra vazia “Buda” e para livrá-la da ilusão de Buda, respondeu: “Um desentupidor de privada”. Nisto, não havia nenhum desrespeito ao Iluminado, já que a resposta tinha por objetivo purificar a mente deludida do discípulo dessa idéia impura; pois, o Buda concebido por uma mente deludida nunca poderia ser o Buda puro, que está além de qualquer descrição. Entretanto, este caso particular não deve ser generalizado, já que a resposta foi apropriada para a pergunta naquele preciso momento. Por isso, Yun Men proibiu seus discípulos de registrar seus ditados. Da mesma forma, nós não podemos seguir o exemplo de Tan Hsia e sair queimando estátuas de Buda por aí. O monge, num primeiro momento, ficou chocado, mas quando ele entendeu o ato de mestre, suas sobrancelhas caíram e iluminou-se instantaneamente.
Essas palavras, frases, gritos, gargalhadas, gesticulações e golpes de bastão são conhecidos como kung-an (koan, em japonês) ou causas contribuintes, capazes de provocar o despertar daqueles discípulos cujas mentes já estão livres da ilusão e cujas potencialidades são estimuladas ao máximo, estando prontas para absorver a verdade. Por exemplo, quando Hui K’o pediu a Bodidarma para aquietar sua mente, mas foi incapaz de mostrá-la para seu mestre, o Primeiro Patriarca, declarou: “Então eu aquietei sua mente”. Ao ouvir essa declaração, o Segundo Patriarca iluminou-se instantaneamente. Essa frase foi um kung-an que contribuiu para a iluminação de Hui K’o. Literalmente, kung-an significa: dossiê, registro, leis e regulamentos do poder público criados para resolver disputas e manter a lei e a ordem. Da mesma forma, todas as instruções dadas pelo Buda e pelos Patriarcas para iluminar as pessoas deludidas são chamadas “As Ordens Corretas” da Seita ou guias irrevogáveis para revelar a verdade, e são denominados os kung-an Ch’an. Po-Yen, disse: “Quando recebiam homens de diferentes potencialidades, os antigos eram obrigados a dar-lhes instruções, que eram chamadas kung-an ou causas contribuintes”.
Quando os homens dotados de uma grande potencialidade e que respondiam ao kung-an se tornaram escassos, os mestres inventaram o que chamamos hua-tou para despir as mentes de seus discípulos de pensamentos e discriminações de forma a livrá-los da visão, da audição, da sensação e do intelecto. Hua-tou significa o exato momento antes que um pensamento ou uma imagem mental agita a mente, e seu sinônimo em inglês se aproxima do termo “antepalavra” ou “antepensamento”. Hua-tou é o pensamento do pensamento, e como todos os pensamentos são equivocados, o hua-tou também é um pensamento impuro usado como artifício para deter o processo do pensamento. Ele é chamado “a espada do Rei Vajra”, a concentração num único ponto para cortar todos os pensamentos e eventuais imagens mentais que possam invadir a mente do meditador durante seu treinamento. Esse pensamento único, fundamentalmente equivocado, também irá desaparecer depois da eliminação dos últimos vestígios da dualidade da realidade do ego e do darma.
Temos a honra de apresentar os seguintes textos:
1. Pré-requisitos para o Treinamento Ch’an
2. O Treinamento Ch’an
3. Palestras Diárias Durante Duas Semanas Ch’an

Os Pré-requisitos do Treinamento Ch’an, O Treinamento Ch’an, e as Preleções Diárias Durante Duas Semanas Ch’an do Mestre Hsu Yun são guias muito úteis, não somente para os praticantes Ocidentais do Ch’an, mas também para os adeptos da Seita no Oriente. Nesses textos, todas as informações são reveladas, e os termos difíceis e o significado profundo são exaustivamente explicados de forma que o principiante possa praticar o Darma da Mente sem a assistência de um mestre.
As estórias dos mestres antigos e os ditados citados pelo Mestre Hsu Yun são encontrados nas seguintes coleções Ch’an:
A Transmissão da Lâmpada (Ching Te Ch’uan Teng Lu)
O Encontro das Cinco Lâmpadas na Fonte (Wu Teng Hui Yuan)
Apontando o Dedo para a Lua (Shui Yueh Chai Chih Yueh Lu)
Seleção Imperial de Ditados Ch’an (Yu Hsuan Yu Lu)
Os Ditados dos Mestres Antigos (Ku Tsun Su Yu Lu)
Estórias de Monges Eminentes (Kao Seng Ch’uan)
Estórias de Upasakas Eminentes (Ch’u Shih Ch’uan)
O mestre também citou algumas passagens muito interessantes do Surangama Sutra (Leng Yen Ching) para aqueles meditadores que já estavam praticando o treinamento Ch’an.
Para familiarizar os leitores com a terminologia Ch’an, ou a linguagem do incriado, como disse o Upasaka P’ang Yun, “A Chegada do Mestre a Ts’ao Ch’i” foi inlcuído depois dos primeiros textos. Neste quarto texto, os leitores sentirão a mesma atmosfera dos mosteiros da China onde a linguagem do absoluto é falada para revelar “aquilo” que é inconcebível e inexprimível.
Este texto transportará os leitores ao próprio coração de T’são Ch’i, um distrito no qual o vento ainda sopra e onde, em 502 d.C., um mestre indiano construiu o mosteiro Pao Lin (Madeira Preciosa), prevendo que dali a 170 anos um Bodisatva de carne e osso chegaria para girar a Roda do Veículo Supremo. Em Madeira Preciosa, nasceram as cinco seitas Ch’an da China. Os leitores serão guiados pelo Mestre Hsu Yun através do Portão T’sao Ch’i, o Portão do Mosteiro, o Salão de Maitreya, o Salão de Wei To, o Salão de Han Shan, o Salão de Buda, os aposentos do Abade e, finalmente, o Salão do Darma, onde Hui Neng sentou no Altar para expor o insuperável Darma e libertou incontáveis seres vivos.
O Mestre Hsu Yun foi Abade do mosteiro Ku Shan, na Província de Fu Chien (Fukien). Numa noite de 1934, durante uma sessão de meditação, o Sexto Patriarca apareceu e disse: “Chegou a hora de retornar”. Na manhã seguinte, o mestre disse ao seu discípulo chefe, Kuan Pen: “Minha vida causal está chegando ao fim. Ontem, vi o Sexto Patriarca chamando-me de volta”. Na quarta lua cheia do mesmo ano, num sonho durante a noite, ele viu o Sexto Patriarca, que por três vezes instou-o a “voltar”. Depois de algum tempo, ele recebeu um telegrama do Governador da Província convidando-o a se transferir para Ts’ao Ch’i para tomar conta do mosteiro do Sexto Patriarca, que estava na mesma condição deplorável à encontrada por Han Shan mais de trezentos anos antes.
As palavras do Darma neste texto têm apenas um objetivo: apontar direto para a mente para a realização da própria-natureza e a obtenção da Budeidade, de acordo com a Transmissão legada pelos Patriarcas do passado.
Meu mestre, o Venerável Hsu Yun, era o filho do Oficial Hsiao Yu T’ang da Prefeitura de Chuan Chou, na Província de Fukien. Ele nasceu na hora Yin do último dia do sétimo mês do ano K’eng Tsu, no vigésimo ano do reino de Tao Kuang (26 de Agosto de 1840, entre as 3.00 e 5.00 horas). Sua mãe morreu logo depois do parto. Quando ele tinha 11 anos, duas pequenas meninas foram escolhidas para se tornarem suas esposas, mas foram mais tarde convertidas ao Budismo pelo seu marido “honorifico”. Depois da morte de seu pai, as duas jovens moças junto com sua madrasta entraram num mosteiro e se tornaram duas monjas iluminadas. Aos 13 anos, ele já pensava em “partir de casa”, mas foi impedido pelo seu pai. Aos 19 anos, ele fugiu de casa junto com um primo e se ordenou no mosteiro Ku Shan, onde sua cabeça foi raspada, sendo iniciado com o nome de Ku Yen e com os cognomes Yen Ch’e e Te Ch’ing. Aos 28 anos, ele isolou-se numa gruta durante três anos. Aos 30 anos, abandonou a gruta e passou a peregrinar de lugar em lugar procurando instrução. Um mestre ensinou-lhe a praticar o hua-t’ou: “Quem está empurrando este corpo agora?” Aos 43 anos, ele foi para P’u T’o e dali para a Montanha dos Cinco Picos. Durante a viagem a pé, ele foi pego por uma grande avalanche de neve, ficando gravemente ferido, sendo salvo duas vezes por um mendigo chamado Wen Chi, que lhe deu comida. Durante sua conversa com o mendigo, este lhe fez várias perguntas estranhas. O mestre, que ainda não estava iluminado, não percebeu que Wen Chi na realidade era Wen Shu, o nome chinês de Manjusri, que veio em seu resgate. Depois de sua estadia na Montanha dos Cinco Picos, ele viajou para o Leste e chegou a Lhasa e dali foi para o Butão, Índia, Ceilão e Burma antes de retornar a China, onde ele reconstruiu vários mosteiros, incluindo aqueles dos fundadores da Seita Ch’an. Ele também viajou pela Malásia e pela Tailândia onde deixou muitos seguidores.
O Mestre Hsu Yun foi o sucessor do Dharma das Cinco Seitas Ch’an da China e é considerado o olho do Dharma Correto da atual geração. A quantidade de seguidores é muito grande e não podem ser contados. Seus discípulos espalham-se por todo lugar e incluem um Abade, monges e monjas no Havaí.


UPASAKA LU K’UAN YU
Hong Kong, 22 de Maio de 1959.

*PRE-REQUISITOS DO TREINAMENTO CH'AN

Tradução para o português de Wu-ming (1947-    )

Extraído do Ho Shang Fa Hui do Venerável Mestre Hsu Yun (1840-1959)

O objetivo do treinamento Ch'an é a realização da mente para a percepção da própria-natureza; isto é, a eliminação das impurezas que poluem a mente de forma que o rosto fundamental da própria-natureza possa ser percebido. Essas impurezas são nosso falso pensamento e o apego às coisas como se fossem reais. A própria-natureza é a meritória característica da sabedoria do Tatâgata que é a mesma tanto nos Budas quanto nos seres vivos. Se o falso pensamento e o apego são postos de lado aparecerá a meritória característica da sabedoria do Tatâgata e tornar-se-á um Buda; de outra forma permanecerá um ser vivente. Desde incontáveis eras, nossa própria delusão nos tem submergido no mar do nascimento e da morte. Como nossa impureza vem de longa data, somos incapazes de libertar-nos instantaneamente do falso pensamento a fim de perceber a nossa própria-natureza. Por isso, torna-se necessário o Ch'an. O pré-requisito deste treinamento é a erradicação do falso pensamento. Em relação a como apagar os falsos pensamentos têm vários ditados de Sakyamuni Buda, mas nada é mais simples do que a palavra "pára" em seu ditado: "Quando a mente pára, isso é a Iluminação (Bodi)”.
Desde sua introdução na China por Bodidarma e até a morte do Sexto Patriarca (Hui Neng), a seita Ch'an espalhou-se por todo o país e desfrutou de uma grande prosperidade, nunca antes nem depois vista. Entretanto, a coisa mais importante ensinada por Bodidarma e pelo Sexto Patriarca era apenas isto: "Evite todas as causas contribuintes" e "Não mantenha nem um único pensamento". Evitar todas as causas contribuintes significa renunciar a elas. Assim, essas duas frases, "Evite todas as causas contribuintes" e "Não mantenha nem um único pensamento", são os pré-requisitos do treinamento Ch'an. Se essas duas frases não são realmente colocadas em prática, não somente o treinamento será inútil, como também será impossível iniciá-lo; pois, como se pode falar em treinamento Ch'an no meio de inúmeras causas que aparecem e desaparecem, pensamento após pensamento?
Agora que nós sabemos que as frases: "Evite todas as causas contribuintes" e "Não mantenha nem um único pensamento" são os pré-requisitos do treinamento Ch'an, como podemos preencher esses pré-requisitos? Aqueles dotados de um alto grau de espiritualidade são capazes de deter para sempre o aparecimento de um único pensamento até que eles alcançam o estado do "não-nascido" e realizam a Iluminação (Bodi) instantaneamente sem ter que fazer nenhuma outra coisa. Aqueles dotados de um menor grau de espiritualidade deduzirão o princípio subjacente aos fatos e compreenderão perfeitamente que a própria-natureza é fundamentalmente pura e limpa e que o infortúnio e a iluminação tanto como o nascimento, a morte e o Nirvana, são nomes vazios que não têm a mínima relação com a própria-natureza; que o mundo fenomênico é como um sonho, uma ilusão, uma bolha, uma sombra; e que os quatro elementos básicos que constituem o corpo físico tanto como as montanhas, os rios, e a terra que estão incluídos dentro da própria-natureza é como borbulha no mar. Esses fenômenos aparecem e desaparecem um atrás do outro sem interferir com a essência da própria-natureza. Desta forma, nós não devemos seguir a ilusão na sua criação, permanência, mutação e aniquilação dando lugar a sentimentos de alegria e de tristeza, e de apego e de rejeição. Deveríamos renunciar a tudo aquilo com que sobrecarregamos nosso corpo, assim nos tornando exatamente como um homem morto. O resultado será que os órgãos dos sentidos, os objetos dos sentidos e as consciências irão desaparecer e que a concupiscência, o ódio, a estupidez e o amor serão eliminados. Quando todos nossos sentimentos de alegria e de tristeza, de frio e de calor, de fome e de saciedade, de honra e de desonra, de nascimento e de morte, de felicidade e de infelicidade, de boa fortuna e de infortúnio, de lucro e de perda; de segurança e de insegurança, de capacidade e de incapacidade, são postos de lado, isto é a verdadeira renúncia a tudo. Renunciar a uma coisa é renunciar a tudo para sempre: isto é chamado “a renúncia a todas as causas contribuintes”. Quando se renuncia a todas as causas contribuintes o falso pensamento desaparece porque não há diferenciação e todos os apegos são eliminados. Quando o estado de "não surgimento de um único pensamento" é alcançado, a luminosidade da própria-natureza aparece por completo. Somente desta forma os pré-requisitos do treinamento Ch'an podem ser completamente preenchidos. Naturalmente, que maiores esforços no verdadeiro treinamento e na real introspecção serão necessários para alcançar a realização da mente para a percepção da própria-natureza.
Ultimamente, os Ch'an Budistas freqüentemente tem-se tem interessado por tudo isto. Em relação ao Darma, fundamentalmente não existe, porque assim que é expresso com palavras seu significado não será verdadeiro. Apenas perceba claramente que a mente é Buda e não há mais nada a fazer. Isto é evidente por si mesmo e qualquer conversa sobre prática e realização são palavras do demônio. Bodidarma -que veio ao Oriente para "apontar direto para a mente do discípulo que deverá perceber a própria natureza com o propósito de alcançar a Budeidade” (o estado de Buda)- deixou claro que todos os seres vivos na face da Terra são Budas. O perfeito reconhecimento desta pura e límpida própria-natureza junto com a completa harmonia com ela, sem as contaminações do apego (inclusive do apego à própria-natureza que também é uma impureza que deverá ser eliminada), andando, parado, sentado ou deitado, dia e noite, nada mais é do que a evidente por si mesma Budeidade. Não exige a utilização da mente ou a realização de um esforço; mais ainda, não há lugar para a ação ou o uso da palavra, discurso ou pensamento. Por essa razão é dito que alcançar a Budeidade é a mais fácil das coisas, pois depende apenas da pessoa e não dos outros. Se os seres vivos da Terra não desejam passar longas eternidades pelos quatro tipos de nascimento (do ovo, da barriga, da umidade e da metamorfose), nos seis planos da existência (devas, homens, espíritos, animais, fantasmas famintos e infernos), permanecendo permanentemente submersos no mar do sofrimento; se eles desejam alcançar a Budeidade com a conseqüente graça da verdadeira eternidade, verdadeira felicidade, verdadeira personalidade e verdadeira pureza (as quatro realidades transcendentais do Nirvana expostas no Mahaparanirvana Sutra), eles devem sinceramente acreditar nas palavras verdadeiras de Buda e de todos os Patriarcas, renunciando a todos os apegos, sem pensar no bem e no mal, e desta forma todos certamente transformar-se-ão em Budas imediatamente. Todos os Budas, Bodisatvas e Patriarcas das gerações passadas não se comprometeram a salvar todos os seres vivos sem terem uma garantia de que o poderiam fazer; e não fizeram os votos em vão ou disseram uma mentira deliberada.
A qualificação acima referida é provida pela própria natureza. Mais ainda, o Buda e os Patriarcas o expuseram uma e outra vez e suas injunções a este respeito também foram repetidas incontáveis vezes; suas palavras eram palavras verdadeiras que correspondiam à realidade e não continham nem uma partícula de falsidade ou decepção. E no entanto, todos os seres da Terra permaneceram, durante incontáveis eras, iludidos e submersos no amargo oceano do nascimento e da morte e da ascensão e da queda nas suas transmigrações sem fim. Iludidos, confusos e perturbados, eles viram as costas para a iluminação e unem-se com as impurezas. Eles são como ouro puro jogado num esgoto onde não somente é desperdiçado como também é contaminado. Por causa de sua grande misericórdia o Buda abriu 84.000 portas (Darma) para a iluminação de forma que os seres vivos das mais diferentes capacidades naturais fossem capazes de curar as 84.000 doenças causadas pela sua habitual concupiscência, raiva, estupidez, e amor. Desta mesma forma, você é ensinado a usar uma toalha, uma escova, água e um pano para limpar, escovar, lavar e polir a peça suja de ouro. Assim, as portas expostas pelo Buda são excelentes Darmas, permitindo ao discípulo libertar-se do nascimento e da morte e alcançar a Budeidade, sendo a única dificuldade em questão a adaptabilidade às potencialidades individuais. Essas portas (Darma) não deveriam ser arbitrariamente divididas em inferiores e superiores. As introduzidas na China são: a Seita Ch'an (Ch'an Tsung), a Seita da Disciplina (Lu Tsung), a Seita do Ensinamento Doutrinário (Chian Tsung), a Seita da Terra Pura (Chin Tsung), e a Seita Secreta (Mi Tsung). Dentro destas cinco portas para o Darma cabe a cada indivíduo escolher qual é a mais apropriada de acordo com seu caráter natural e inclinações, e se persistir o tempo suficiente sem mudar de opinião e a atravessar completamente certamente alcançará seu objetivo.
Nossa Seita prefere o treinamento Ch'an. Este treinamento centra-se na "realização da mente e na percepção da própria-natureza", que nada mais é do que uma exaustiva investigação sobre nosso rosto- fundamental. A porta do Darma, que consiste em "claramente despertar para a própria-mente através da percepção da natureza-fundamental", vem sendo transmitida desde que Buda levantou a flor e desde a chegada de Bodidarma ao Oriente, com freqüentes mudanças no método de treinamento. Até a dinastia Sung (960 - 1279) a maioria dos adeptos da Seita Ch'an iluminava-se depois de ouvir uma palavra ou uma frase. A transmissão do mestre para o discípulo não ia além da transmissão da mente para a mente e não era ensinado nenhum Darma específico. Nas perguntas e respostas a função do mestre era soltar as amarras que prendiam o discípulo, libertando-o dos impedimentos causados pela delusão de acordo com as circunstâncias, tal como faz o médico quando receita um remédio para uma doença específica. Durante e após a dinastia Sung as potencialidades humanas tornaram-se embotadas e as instruções dos mestres não eram seguidas por seus discípulos.  Por exemplo, quando os discípulos eram instruídos para "abandonar tudo" e "não pensar no bem e no mal", os praticantes não eram capazes de abandonar tudo nem podiam evitar pensar no bem e no mal. Dadas essas circunstâncias, os mestres ancestrais foram obrigados a desenvolver o método de "veneno contra veneno", ensinando seus discípulos a perguntar-se sobre o "kung-an" - enigmas colocados pelos mestres Ch'an através dos quais a mente concentra-se até alcançar a unidade interior e a iluminação - ou olhar dentro de um hua-tou - antepalavra ou antepensamento; isto é, o estado da mente antes de ser agitada por um pensamento; a mente no estado de quietude; a manutenção do hua-tou na mente significa prestar atenção à própria mente até sua realização ou a capacidade de virar para dentro a faculdade da audição para escutar à própria- natureza provocando o desligamento da mente dos aspectos exteriores. Seus discípulos eram orientados para segurar o hua-t’ou tão firmemente como fosse possível, sem perder contanto com ele nem por um segundo, da mesma forma que um rato rói a madeira de um caixão no mesmo lugar até fazer um buraco. O objetivo deste método era o de utilizar um único pensamento para enfrentar e deter a miríade de pensamentos, porque os mestres não tinham nenhuma outra opção. Era como realizar uma operação depois que o veneno tinha entrado no corpo. Havia muitos kung-an inventados pelos antigos, mas posteriormente apenas os hua-tou eram ensinados. Nos dias de hoje, os mestres usam o hua-t’ou: “Quem está repetindo o nome de Buda?” (No Centro de Treinamento Ch’an usamos o hua-tou: “Pára!”).
Todos esses hua-tou têm apenas um único sentido que é muito simples e não há nada de especial neles. Se você presta atenção a “Quem está acordado?”; “Quem está dormindo?”; "Quem está recitando um Sutra?"; "Quem está almoçando?"; "Quem está vendo televisão?"; “Quem está dirigindo o carro?”; “Quem está pensando?”; "Quem está lendo?"; "Quem está escrevendo?" ou "Quem está falando?"; a resposta a esse "Quem?" invariavelmente será a mesma: "É a Mente". A palavra origina-se na Mente e a Mente é a cabeça da Palavra. O Pensamento origina-se na Mente e a Mente é a cabeça do Pensamento. A miríade de coisas provém da Mente e a Mente é a cabeça da miríade de coisas. Na realidade o hua-tou é a cabeça do pensamento. A cabeça do pensamento não é nenhuma outra coisa a não ser a Mente. Para que fique bem claro, antes do pensamento surgir é um hua-tou . De onde se conclui que prestar atenção ao hua-tou é prestar atenção à Mente. O rosto-fundamental antes de nascer é a Mente. Prestar atenção ao seu rosto-fundamental antes de nascer é prestar atenção a sua Mente. A própria-natureza é a Mente e "virar a audição para dentro para escutar a própria-natureza” é virar a contemplação para dentro para contemplar à própria-mente.
A frase: "o brilhar perfeito da consciência pura", significa: "a consciência pura" é a mente e "brilhar" significa prestar atenção. A Mente é Buda e repetir o nome de Buda é contemplar Buda. Contemplar Buda é contemplar a Mente. Desta forma, “prestar atenção ao hua-tou ou "prestar atenção àquele que repete o nome de Buda" é contemplar a mente ou contemplar a pura essência da consciência da própria mente, ou contemplar a própria-natureza de Buda. A Mente é a própria-natureza, é a consciência e é Buda, que não tem forma nem lugar, sendo, portanto, indescritível. É limpo, puro e onipresente, não chega nem vá embora, e é fundamentalmente o evidente por si mesmo corpo essencial de Buda (Darmakaya).
O adepto deverá manter sob controle os seis órgãos dos sentidos - os seis gunas: a visão, a audição, o olfato, o gosto, o tato e o intelecto - e tomar conta do hua-tou prestando atenção ao momento em que o pensamento aparece até perceber a pura própria-natureza, livre de qualquer pensamento. Essa permanente, profunda, calma e indiferente investigação levarão o adepto a um imóvel e luminoso estado de contemplação - a essência da mente é imutável e sua função luminosa - cujo resultado será o imediato desaparecimento das cinco funções constitutivas do ser sensciente - os cinco skandas: a matéria, a sensação, a conceituação, a discriminação e a consciência - e o apagamento do corpo e da mente sem deixar o mínimo vestígio para trás. A partir daí, essa imutabilidade absoluta deverá ser mantida em qualquer situação, andando, parado, sentado ou deitado, dia e noite. A medida que o tempo passa, esse feito será levado à perfeição o que resultará na percepção da própria-natureza e na Budeidade, com a conseqüente eliminação de todas as perturbações e sofrimentos.
O mestre ancestral Kao Feng dizia: "Quando o estudante presta atenção ao hua-tou com a mesma constância com que uma telha partida afunda num lago profundo até alcançar o fundo, se ele não conseguir despertar em sete dias, qualquer um pode arrancar minha cabeça e jogá-la fora". Queridos amigos: essas são as palavras de um mestre experiente; elas são verdadeiras e correspondem à realidade; não são palavras enganosas para iludir as pessoas.
Por que então na atual geração apenas uns poucos alcançam a iluminação a despeito do grande número de homens e mulheres que seguram um hua-tou nas suas mentes? Isto é porque suas potencialidades não estão tão desenvolvidas como às dos antigos. Também porque os estudantes confundem-se em relação ao método correto de treinamento e à técnica do hua-tou. Eles freqüentam vários lugares diferentes procurando instrução e o resultado é que quando a velhice chega ainda não sabem direito o significado do hua-tou e como prestar atenção a ele. Passam a vida inteira apegados às palavras e aos nomes e ocupando suas mentes com o rabo do hua-tou - quando o adepto procura o significado racional da frase, ele está pensando no "rabo do hua-tou" no lugar de pensar na "cabeça do hua-tou", o que está errado. Eles olham e procuram o significado das frases: "Presta atenção àquele que repete o nome de Buda" e "Toma conta do hua-tou", e quanto mais olham e procuram mais se afastam do significado real das frases. Assim, como podem despertar para a evidente por si mesma wu-wei (não-ação), realidade suprema, e como podem ascender ao imperturbável Trono Real? Quando o pó de ouro é jogado nos seus olhos eles ficam cegos; como poderiam eles irradiar o grande raio iluminador? Que pena! Que pena! Eles são bons filhos e boas filhas que deixam seus lares na procura da verdade e sua determinação está acima da média. Que pena  que eles trabalhem por nada! Por isso um mestre ancestral disse: "É melhor permanecer adormecido durante mil anos do que trilhar o caminho errado um único dia".
O autocultivo para o despertar para a verdade é fácil e difícil ao mesmo tempo. Por exemplo, quando ligamos a luz, se sabemos como, num estalar dos dedos, far-se-á a luz e a obscuridade que durou incontáveis anos desaparecerá. Mas, se não se sabe ligar a luz os cabos elétricos entrarão em curto circuito e a lâmpada queimar-se-á, o que resultará num aumento do apego e da ignorância. Há também os que, quando prestam atenção ao hua-tou durante o treinamento Ch'an, se envolvem com os demônios e se tornam insanos enquanto outros vomitam sangue e adoecem – quando se permite a entrada de um pensamento ruim no estado de concentração da mente enquanto se segura um hua-tou, esse pensamento pode alcançar uma proporção fora de controle, tornando-se impossível de subjugar, provocando a insanidade. Não são, pois, o fogo da ignorância explodindo em chamas e a visão profundamente enraizada do eu e dos outros as causas de tudo isso? Assim, os adeptos devem harmonizar o corpo com a mente e tornarem-se calmos, livres de qualquer impedimento e da visão do eu e dos outros de forma a alcançar um acordo perfeito com suas potencialidades latentes. Fundamentalmente, o método usado no treinamento Ch'an é invariavelmente o mesmo, mas o treinamento é difícil e fácil ao mesmo tempo, tanto para os principiantes quanto para os veteranos.
Onde jaz a dificuldade para um principiante? Embora o seu corpo e a sua mente estejam maduros para o treinamento, ele ainda está confuso em relação ao método a ser praticado e como sua prática não produz resultados ele perderá a paciência ou perderá seu tempo cochilando com o seguinte resultado: "No primeiro ano, o treinamento de um principiante; no segundo ano, o treinamento de um veterano; e no terceiro ano, nenhum treinamento".
Onde jaz a facilidade para um principiante? Apenas se requer uma mente crente, perseverante e desocupada. Em primeiro lugar, uma mente crente tem a certeza de que a nossa mente é fundamentalmente Buda, não sendo diferente de todos os Budas e de todos os seres vivos nos três estágios do tempo - passado, presente e futuro - e nas dez direções do espaço; e, em segundo lugar, a certeza que todos os Darmas expostos por Sakyamuni Buda podem fazer com que sejamos capazes de colocar um fim ao ciclo de nascimento e morte, alcançando Budeidade. Uma mente perseverante consiste na escolha de um método que deverá ser colocado continuamente em prática na vida atual, na vida próxima e na vida depois da próxima. O treinamento Ch'an deverá ser conduzido dessa forma; a repetição do nome de Buda deverá ser conduzida dessa forma; a repetição de uma mantra (cântico místico) deverá ser conduzida dessa forma; e, o estudo dos sermões (sutras), que consiste em colocar em prática os ensinamentos recebidos através das Escrituras, deverá ser conduzido dessa forma. A prática de qualquer porta do Darma deverá ser baseada na disciplina (sila) e se o treinamento é conduzido dessa forma não há nenhuma razão para não se ter sucesso. O velho mestre Kuei Shan costumava dizer: "Qualquer um que pratique esse Darma sem desistir durante três vidas sucessivas, certamente pode alcançar a Budeidade".
Por mente desocupada entende-se o abandono de tudo - isto é, livre de todos os apegos que são considerados um fardo do qual se deve desfazer - de forma que o adepto torna-se como um homem morto, que enquanto se comporta como os outros nas suas atividades normais, não dá lugar ao aparecimento da mínima discriminação e apego e vive como um simples religioso.
Depois que o principiante adquiriu esses três tipos de mente, se ele se submete ao treinamento Ch'an e presta atenção ao hua-tou,: "Quem é que repete o nome de Buda?", ele deverá silenciosamente repetir várias vezes: "Amitaba Buda, Amitaba Buda, Amitaba Buda” e então prestar atenção àquele que pensa no Buda e onde esse pensamento surge. Ele saberá que esse pensamento não se origina na sua boca ou no seu corpo. Caso se originasse na boca ou no corpo, quando morresse, não poderiam sua boca ou seu corpo, que ainda existiriam, originar um pensamento? Assim, ele sabe que esse pensamento provém de sua mente. Agora, o principiante poderá observar e localizar onde sua mente origina esse pensamento e prestar atenção a ele, como um gato que permanece atento para caçar o rato, com toda sua atenção excludente concentrada nele, livre de um segundo pensamento. Entretanto, sua atenção e seu embotamento deverão ocorrer em proporções iguais. Nunca deverá estar muito atento porque tal atenção poderá causar uma doença. Se o treinamento é conduzido desta forma, em todas as circunstâncias, andando, parado, sentado ou deitado, dia e noite, tornar-se-á eficiente com o tempo, e quando a causa chega ao momento do usufruto, como um melão maduro que cai naturalmente, qualquer coisa que possa tocar ou entrar em contato irá repentinamente causar o despertar supremo. Nesse momento o adepto será como aquele que bebe água e somente ele sabe se a água está fria ou quente, até que ele se livre de todas as dúvidas em relação a si mesmo e vivencie uma grande felicidade, igual à que se sente quando se encontra o pai no meio de uma multidão longe de casa.
Onde a facilidade e a dificuldade jazem para o veterano? Por veterano entende-se alguém que recorreu a mestres esclarecidos para sua instrução e submeteu-se ao treinamento por muitos anos durante os quais seu corpo e sua mente tornaram-se maduros; alguém que não tinha dúvida em relação ao método que poderia praticar confortavelmente sem experimentar nenhum obstáculo. A dificuldade que um monge veterano poderá enfrentar jaz na sensação de conforto e clareza na qual ele pára e permanece. Assim, por causa de sua permanência nesse lugar ilusório ele não alcança o lugar das coisas preciosas - isto é, o Nirvana perfeito. Ele apenas se adapta à quietude, mas não se adapta ao tumulto e seu treinamento não é, conseqüentemente, completamente efetivo para qualquer circunstância. Na pior das hipóteses, o adepto desenvolverá, quando em contato com as condições do meio ambiente, sentimentos de prazer e desprazer, e aceitação e rejeição com o resultado que seus falsos pensamentos, tanto os grosseiros quanto os sutis, permanecerão tão firmes como antes: seu treinamento pode comparar-se ao ato de molhar uma pedra com água e tornar-se-á inútil. A medida que o tempo passa o cansaço e a preguiça infiltrar-se-ão no seu treinamento, que no fim tornar-se-á infrutífero. Quando um monge toma consciência disso ele imediatamente deverá reanimar o hua-tou novamente e levantar o espírito para avançar um passo a frente do topo do mastro de cem pés de altura que ele alcançou - esse estado de quietude é descrito em "A Iluminação Perfeita" do Bodisatva Avalokitesvãra quando disse: "Ambos, a audição e o objeto da audição, desapareceram mas eu não permaneci onde eles desapareceram" - até chegar ao topo do mais alto pico no qual ele permanecerá firmemente ou ao fundo do mais profundo oceano, onde ele caminhará em todas as direções. Ele cortará seu último elo de ligação com o irreal e caminhará livremente por todos os lugares encontrando-se, cara a cara, (literalmente, substância a substância ou essência a essência) com Budas e Patriarcas. Onde está a dificuldade? Isto não é fácil?
Hua-tou é a mente única. Essa mente única de vocês e minha não está dentro, nem fora, nem no meio..Também está dentro, fora e no meio. É como o Espaço, imutável e onipresente. Por isso, o hua-tou não deve ser puxado para acima ou para baixo. Se for puxado para cima causará mal-estar e se for puxado para baixo causará preguiça e assim entrará em contradição com a natureza da mente - o corpo-mente imutável, a fundamentalmente existente mente pura - e desviar-se-á do caminho do meio.  Todos têm medo do falso pensamento que acham difícil de controlar, mas eu digo a vocês, caros amigos, não tenham medo do falso pensamento nem tentem controlá-lo. Vocês devem ter consciência dele mas não se deve apegar a ele, segui-lo ou afastá-lo. Será suficiente cortar o pensamento e ele deixará vocês em paz. Por isso, o ditado: "o aparecimento da falsidade deverá ser reconhecida no ato e uma vez reconhecida desaparecerá".
Entretanto, se no seu treinamento o adepto poder usar esse falso pensamento no seu próprio benefício ele prestará atenção onde se origina e perceberá que não tem natureza própria. Perceberá a não-existência desse pensamento e recuperará sua natureza vazia, seguida imediatamente pela manifestação da pura própria-natureza do Darmakaya Buda que aparecerá na hora.
Na realidade, o real e o falso têm a mesma natureza: os seres vivos e os Budas não são dois; nascimento e morte e Nirvana assim como a iluminação e a obscuridade todos fazem parte de nossa própria-mente e de nossa própria-natureza e não deveriam ser diferenciados, nem gostados nem desgostados, nem aceitos nem rejeitados. Essa mente é pura e limpa e fundamentalmente é Buda. Nem um único Darma é necessário na questão da iluminação. Por que tanta complicação? T'san! - (Usualmente no final de cada reunião o mestre pronuncia essa palavra para estimular seus discípulos a penetrar dentro do significado real do sermão).

* O TREINAMENTO CH'AN

Pelo Venerável Mestre Hsu Yun (1840-1959)

Tradução para o português de Wu-ming (1947-    )


Pré-requisitos para a Prática das Tarefas Religiosas

(1) Acreditar na "Lei da Causalidade".
Quem quer que seja que procure realizar as práticas religiosas, deve acreditar firmemente na lei da causalidade. Quando se ignora essa lei e se faz apenas a própria vontade, não somente fracassar-se-á no cumprimento das tarefas religiosas, como que também sofrer-se-á as conseqüências dessa lei através das três formas de castigo: inferno de fogo, inferno de sangue e inferno de espadas. Um mestre antigo disse: "Se quer saber as causas formadas na vida passada, as podemos encontrar no tipo de vida presente; se quer saber o tipo de vida futura, o podemos encontrar nos atos da vida presente". Ele também disse: "O carma de nossos atos nunca será apagado mesmo após centenas e milhares de eras, mas assim que as condições tornam-se maduras sofreremos as conseqüências nós mesmos". O Surangama Sutra diz: "Se a causa não é verdadeira o fruto maduro será podre". Assim, quando se semeia uma boa causa obter-se-á um bom fruto e quando se semeia uma causa ruim obter-se-á um fruto ruim; quando se semeiam sementes de melão obter-se-ão melões e quando se semeiam sementes de feijão obter-se-á feijão. Essa é a grande verdade. Como estou falando da lei da causalidade contarei uma historinha para ilustrá-la.
A história refere-se ao massacre do clã de Sakya pelo Rei Crystal Virudhaka - esta história foi contada pelo próprio Buda. Antes do advento de Sakyamuni Buda existia um vilarejo perto de Kapila habitado por pescadores que pescavam num grande lago. Aconteceu que por causa de uma grande estiagem o lago secou e os habitantes mataram e comeram todos os peixes. O último peixe era enorme e antes de ser morto um garoto, que nunca tinha comido peixe, bateu três vezes na cabeça dele. Mais tarde, depois do aparecimento de Sakyamuni Buda neste mundo, o Rei Prasenajit, que acreditava no Darma de Buda, casou-se com uma moça Sakya que deu a luz um príncipe chamado Crystal. Quando jovem Crystal foi educado em Kapila que era na época habitada pelo clã Sakya. Um dia, enquanto brincava, o menino subiu ao púlpito de Buda e sendo reprimido foi retirado dali pelos mais velhos. O menino alimentou um grande rancor contra os que o tinham repreendido e quando se tornou Rei comandou um ataque devastador contra Kapila matando todos seus habitantes. Na mesma hora Buda sofreu uma forte dor de cabeça que durou três dias. Quando seus discípulos pediram-lhe para resgatar os habitantes de Kapila, Buda respondeu que um determinado carma não podia ser mudado. Então, através de seus poderes mágicos Maudgalyãyana - era um dos dez discípulos chefes de Buda, especialmente conhecido pelos seus poderes mágicos - resgatou quinhentos homens do clã Sakya pensando que poderia refugiá-los numa grande tigela suspensa no ar. Quando a tigela foi colocada no chão todos os homens tinham-se convertido em sangue. Quando perguntado por seus discípulos sobre o que acontecera, Buda explicou que no passado os homens do clã Sakya tinham matado e comido todos os peixes do lago, o Rei Crystal tinha sido aquele grande peixe que morreu por último e os soldados todos os outros peixes mortos; os habitantes de Kapila agora mortos tinham sido aqueles que comeram os peixes; e o próprio Buda tinha sido aquele garoto que bateu na cabeça do grande peixe três vezes, sofrendo em conseqüência uma dor de cabeça de três dias em retribuição ao seu ato no passado. Como não se pode escapar das conseqüências de um determinado carma os quinhentos homens resgatados por Maudgalyãyana sofreram o mesmo destino. Mais tarde, o Rei Crystal renasceu num inferno. Como cada causa produz um efeito que pela sua vez torna-se uma nova causa, a lei do retorno é inesgotável. A lei da causalidade é realmente muito terrível.
Queridos amigos, depois de ouvir essa história vocês devem ter percebido que a lei da causalidade é em verdade uma coisa terrível. Mesmo após ter alcançado a Budeidade, o Buda ainda sofreu uma dor de cabeça em retribuição ao seu ato passado. A retribuição é infalível e não se pode escapar de um determinado carma. Desta forma, devemos estar sempre atentos a tudo isso e devemos ter muito cuidado em relação à criação de novas causas.

(2) Observância Estrita das Regras de Disciplina (Sila)
Quando se procura realizar as práticas religiosas, a primeira coisa a cumprir são as regras de disciplina. A disciplina é o fundamento da suprema Iluminação (Bodi): a disciplina gera imutabilidade e a imutabilidade gera Sabedoria (Prajnã). Não há nenhuma autoprática sem o cumprimento das regras de disciplina. O Surangama Sutra, que relaciona os quatro tipos de pureza, claramente nos ensina que a prática do Samadi (estado de imperturbabilidade isento de sensações externas) sem o cumprimento das regras de disciplina não irá apagar essas impurezas. Mesmo que haja a manifestação de um grande conhecimento de Dyana (meditação ou contemplação abstrata), cair-se-á no plano dos mãras (demônios perversos) e heréticos. Conseqüentemente, nós sabemos que o cumprimento das regras de disciplina é muito importante. O homem que as cumpre está amparado e protegido por dragões-reis e devas (deuses) e é respeitado e temido por mãras e heréticos. O homem que quebra as regras de disciplina é chamado de grande ladrão pelos fantasmas que fazem a varredura até de suas pegadas.
Antigamente, no estado de Kubhana (Kashmir) havia nos redores de um mosteiro um dragão venenoso que freqüentemente devastava a região. No mosteiro, quinhentos arhats - o ideal da doutrina Hinayana que procura apenas sua própria libertação, em contraste com o Bodisatva, o ideal da doutrina Mahayana, que procura a libertação de todos os seres vivos - não conseguiam afastar o dragão com seu poder coletivo de Dyana-Samadi. Mais tarde, um monge chegou ao mosteiro e em lugar de entrar no estado de Dyana-Samadi, apenas disse para o dragão venenoso: "Será que o inteligente e virtuoso poderia ir embora daqui para um lugar bem longe?” A partir desse momento, o dragão venenoso voou para um lugar bem distante. Quando questionado pelos arhats sobre os poderes mágicos que ele usou para afastar o dragão, o monge respondeu: "Eu não usei o poder do Dyana-Samadi; apenas sou muito cuidadoso no cumprimento das regras de disciplina e observo com o mesmo cuidado tanto as regras maiores quanto as regras menores". Assim, podemos ver que o poder coletivo do Dyana-Samadi de quinhentos arhats juntos não se pode comparar ao poder de um único monge que segue estritamente as regras de disciplina.
Se vocês me questionam citando as palavras do Sexto Patriarca: "Por que se deve observar a disciplina se a mente é imparcial? Por que um homem reto deveria praticar Ch'an?"; eu pergunto a vocês de volta: São suas mentes imparciais e retas? Se a senhora Ch'ang-O descesse da lua - uma dama muito bela que, segundo a lenda, roubou o elixir da imortalidade e fugiu para a lua onde se converteu num sapo – e com seu corpo nu tomasse vocês nos seus braços, permaneceriam seus corações imperturbáveis; e se alguém sem nenhum motivo aparente insulta e agride vocês, isso não despertaria sentimentos de ódio e vingança em vocês? Podem vocês evitar estabelecer diferenças entre a amizade e a inimizade, o amor e o ódio, o eu e os outros, o certo e o errado? Se vocês podem fazer isso, então podem abrir a boca e falar , mas se não podem fazer isso, então é inútil dizer uma mentira deliberada.

(3) Uma Fé Inabalável.
Uma mente de fé inabalável é o fundamento do treinamento daquele que quer cumprir com suas práticas religiosas, porque a fé é a mãe da doutrina correta e também porque sem fé não haverá boa vontade. Se nós desejamos nos libertar do ciclo de nascimento e morte, devemos primeiro possuir uma mente de fé inabalável. Buda disse que todos os seres vivos da Terra têm inerente dentro deles a sabedoria do Tatâgata (um dos nomes de Buda) que eles não podem realizar apenas por causa do falso pensamento e do apego. Ele também mostrou todas as portas do Darma para a iluminação, curando todos os tipos de doenças, das quais sofriam os seres vivos. Devemos, portanto, acreditar que as palavras de Buda não são falsas e que todos os seres vivos podem alcançar a Budeidade. Mas por que não conseguimos alcançar a Budeidade? É porque não treinamos de acordo com o método correto. Por exemplo, nós acreditamos e sabemos que o coalho de soja pode ser feito com grãos de soja, mas se não começamos a preparar os grãos, o coalho não se fará sozinho. Agora, assumindo que o coalho de soja é feito com grãos de soja, ainda não conseguiremos fazê-lo se não sabemos como misturar a gipsita. Se conhecermos o método, moeremos os grãos, os ferveremos na água, e depois colocaremos a quantidade certa de gipsita; e aí certamente obteremos o coalho de soja. Da mesma forma, na prática de nossas tarefas religiosas a Budeidade não será alcançada por aqueles que não treinam nem por aqueles que não usam o método certo. Se nosso autocultivo é praticado de acordo com o método correto sem desistir ou se arrepender, é certo que alcançaremos a Budeidade. Assim, deveremos saber que fundamentalmente nós somos Buda; também deveremos saber que se nosso autocultivo é feito de acordo com o método correto é certo que alcançaremos a Budeidade.
O Mestre Yung Chia disse na sua "Canção da Iluminação”:

“Realizando a Realidade! Eu e os outros não existimos.
O Carma de Avici é apagado num segundo.
Se eu minto conscientemente para enganar os seres vivos,
Irei sofrer nesse inferno por incontáveis eras, tantas como grãos de areia”.

O velho mestre era muito piedoso e fez esse voto sem limites para obrigar àqueles que viessem depois dele a desenvolver uma mente de fé inabalável.

(4) A Escolha do Método de Treinamento
Depois que se desenvolveu uma fé inabalável deve escolher-se uma porta de entrada para a iluminação. Nunca se deve mudar de treinamento, e quando a escolha for feita, seja a repetição do nome de Buda, seja o canto de uma mantra, seja o treinamento Ch'an deve ir-se até o fim sem desistir ou arrepender-se. Se hoje o método parece não dar resultado, amanhã deve continuar-se; se este ano o método parece não dar resultado, o próximo ano deve continuar-se; e se na vida atual o método parece não dar resultado, na próxima vida deve continuar-se. O velho mestre Kuei Shan, disse: "Quando se pratica em cada sucessiva reencarnação, o estágio de Buda será alcançado". Há muitas pessoas que parecem duvidar de suas escolhas. Hoje, após ouvir um mestre esclarecido elogiar o método de repetição do nome de Buda eles decidem repeti-lo por um par de dias; depois de amanhã, após ouvir outro mestre esclarecido elogiar o treinamento Ch'an eles pratica-lo-ão por um ou dois dias. Se eles gostam de brincar dessa forma, eles continuarão até a morte sem alcançar nenhum resultado. Isto não é uma pena?

O Método de Treinamento Ch'an

Embora haja inúmeras portas de entrada para a iluminação, Buda, os Patriarcas e os Ancestrais, concordaram em considerar o treinamento Ch'an a insuperável porta maravilhosa. Na assembléia de Surangama, Buda ordenou a Manjusri escolher entre os vários métodos de alcançar a iluminação completa e ele escolheu o método de Avalokitesvara Bodisatva, que usava a faculdade da audição, como o melhor. Quando utilizamos o sentido da audição para escutar nossa própria-natureza, este é um dos métodos de treinamento Ch'an. Este lugar é o auditório Ch'an e devemos discutir o treinamento Ch'an.


O Essencial do Treinamento Ch'an.

Nossas atividades diárias são realizadas dentro da própria verdade. Existe algum lugar que não seja um Bodimandala? – um lugar sagrado, destinado à iluminação. Fundamentalmente um pátio Ch'an está fora de lugar. Mais ainda, Ch'an não significa sentar-se para meditar. O chamado pátio Ch'an e a chamada posição Ch'an são apenas para aqueles que encontram obstáculos insuperáveis dentro deles mesmos e que tem pouquíssima sabedoria nesta época de decadência do Darma.
Quando neste treinamento se adota a posição de “sentado”, o corpo e a mente devem estar sob perfeito controle. Se eles não estão sob perfeito controle um dano pequeno será ficar doente e um grande dano será o envolvimento como o demônio, o que é mais lamentável ainda. No pátio Ch'an, quando o incenso é aceso para ajudar o adepto, andando ou sentado, o objetivo é assegurar o controle do corpo e da mente. Além desta, há muitas outras formas de controlar o corpo e a mente, mas eu me referirei às mais importantes.
Quando sentado em meditação Ch'an a posição correta é a posição natural. O torso não deverá ficar inclinado para frente já que se assim acontece o calor interior será puxado para cima com o resultado que após da meditação haverá lágrimas, uma respiração difícil, falta de ar, perda de apetite e vômito de sangue. Tampouco se deverá inclinar o torso para trás, pois isto provoca sonolência com facilidade. Tão logo a sonolência é percebida, o praticante deverá manter os olhos bem abertos, levantar o torso e sacudir suavemente as nádegas, e a sonolência desaparecerá imediatamente.
Se o treinamento é conduzido com ansiedade o praticante sentirá um certo calor no peito. Nesse caso é aconselhável parar o treinamento durante o tempo que se demora para queimar meio incenso e recomeçar quando se está relaxado novamente. Se não se procede dessa maneira, com o passar do tempo desenvolver-se-á um temperamento quente e excitável, e no pior dos casos, tornar-se-á insano ou envolver-se-á com os demônios.
Quando a meditação Ch'an começa a dar resultado, ocorrerão vários estados mentais que são muitos para enumerá-los, mas se vocês não se apegam a eles, eles não causarão nenhum dano. É isso exatamente o que significa o provérbio: "Não se maravilhe com o maravilhoso e o maravilhoso desaparecerá”. Mesmo que vocês vejam espíritos obsessores de todos os tipos tentando perturbar vocês, devem ignorá-los e não ter medo deles. Mesmo que Sakyamuni Buda apareça e coloque a mão sobre suas cabeças - um hábito de Buda quando ensinava seus discípulos - e profetize sua futura Budeidade, vocês não devem prestar atenção a nada disso nem se sentir encantados por causa disso  - a visão eventual de Buda é meramente uma criação impura da mente deludida e não representa ele realmente, pois o Darmakaya é inconcebível (O Darmakaya, o corpo espiritual de Buda, invisível para todos aqueles que não sejam Budas). O Surangama Sutra diz: "O estado perfeito é aquele em que a mente não é perturbada pela santidade: a representação da santidade é produto do envolvimento com os demônios".


Como Começar o Treinamento:
Distinção entre Anfitrião e Hóspede.


Como se deve começar o treinamento Ch'an? Na assembléia de Surangama, Arya Ajnatakaundinya falou sobre a "poeira intrusa" e é justamente por onde começaremos o treinamento. Ele disse: "Por exemplo, um viajante pára numa hospedaria onde ele pernoita ou janta e logo que acaba sua refeição continua a viagem porque não tem tempo a perder. No que diz respeito ao anfitrião da hospedaria, ele não tem nenhum lugar para onde ir. Minha dedução é que aquele que não permanece é o hóspede e àquele que permanece é o anfitrião. Assim, uma coisa é intrusa quando não permanece. Quando num céu claro o sol aparece e a luz solar penetra pela janela, pode ver-se a poeira flutuando a contraluz enquanto que o espaço permanece imutável. Assim, aquilo que está imóvel é o vazio e aquilo que se move é a poeira".
A "poeira intrusa" representa o falso pensamento e o "vazio" representa a própria-natureza; isto é, o anfitrião permanente que não segue o hóspede no seu incessante "ir e vir". Isto serve para ilustrar a eterna (imutável) própria-natureza que não segue o falso pensamento no seu repentino aparecimento e desaparecimento. Por isso, é dito: "Aquele que não se importa com todas as coisas não se incomodará quando estiver rodeado de todas as coisas". Por poeira que se move por ela mesmo e não incomoda o vazio que permanece absolutamente imóvel entende-se o falso pensamento que aparece e desaparece por si mesmo e não afeta à própria-natueza que é imutável na sua condição de Butatata (qüididade). Esse é o significado do ditado: "Quando a mente não aparece, as coisas não tem culpa".
O significado da palavra "intrusa" é grosseiro enquanto que o significado da palavra "poeira" é sutil.  Os principiantes devem claramente compreender a diferença entre "anfitrião" e "hóspede" e assim não serão arrastados pelo falso pensamento. Avançando mais um pouco, eles esclarecerão o termo “vazio" e o termo "poeira intrusa" e assim não sofrerão nenhuma interferência do falso pensamento. Costuma-se dizer: "Quando o falso pensamento é conhecido não haverá nenhum dano". Investigando cuidadosamente e compreendendo tudo o que foi dito, mais da metade do que o treinamento significa ficará claro para vocês.


Hua-tou e Dúvida

Nos tempos antigos, os Patriarcas e os Ancestrais apontavam diretamente à mente para a realização da própria-natureza e para a obtenção da Budeidade. Como Bodidarma que "aquietava a mente" e o Sexto Patriarca que apenas falava sobre a percepção da própria-natureza, todos eles defendiam o completo conhecimento disso e não havia mais nada a fazer. Eles não recomendavam prestar atenção ao hua-tou, mas com o tempo descobriram que os homens não eram mais confiáveis, não estavam munidos de uma tenaz determinação, utilizavam artimanhas e jactavam-se de possuir as gemas preciosas que na realidade pertenciam aos outros. Por essas várias razões os Ancestrais foram obrigados a fundar suas próprias seitas, cada uma com seus próprios métodos e daí a técnica do hua-tou.
Há inúmeros hua-tou, mas o mais usado nos dias de hoje é: "Quem está repetindo o nome de Buda?". (No Centro de Treinamento Ch’an usamos o hua-tou: “Pára!”).
O que é um hua-tou? Literalmente, a cabeça de uma palavra. Palavra significa a palavra falada e cabeça significa o que precede a palavra. Por exemplo, quando alguém diz: "Amitaba Buda", esta é uma palavra. Antes de ser pronunciada é um hua-tou ou antepalavra. Aquilo chamado de hua-tou é o instante antes do aparecimento de um pensamento. Tão logo o pensamento aparece torna-se um hua-mei ou o rabo de uma palavra. O instante antes do aparecimento de um pensamento é chamado de "o não-nascido" ou "o incriado". Esse vazio, que não é permanente, nem impermanente, e não é móvel, nem imóvel, é chamado "o sem fim".
O incessante direcionamento do holofote para dentro de si mesmo, instante após instante, excluindo todas as outras coisas, é chamado de "prestar atenção ao hua-tou" ou "cuidar do hua-tou".
Quando se presta atenção no hua-tou o mais importante é levantar uma dúvida. A dúvida é o fundamento do hua-tou. Por exemplo, quando alguém se pergunta: "Quem está falando agora?”, todo mundo sabe quem é esse alguém que está repetindo as palavras; mas é a boca ou a mente que as repete? Se for a boca, por que ela não as repete quando esse alguém está dormindo? Se for a mente que as repete, qual é a aparência da mente? Como a mente é intangível não parece claro como é que a mente pode repeti-las. Conseqüentemente, um sentimento de dúvida aparece em relação a quem é esse "quem". Essa dúvida não deve ser grosseira, quanto mais sutil, melhor. O tempo todo em todo lugar somente essa dúvida deve ser olhada incessantemente, como uma corrente sempre fluente, sem dar origem a um segundo pensamento. Se essa dúvida persiste, não tentem livrar-se dela; se cessar devem reanimá-la suavemente. Os principiantes acharão o hua-tou mais efetivo num lugar calmo do que no meio do tumulto. Entretanto, não se deve dar lugar a uma mente discriminadora; deve permanecer-se indiferente à eficiência ou ineficiência do hua-tou e não se deve prestar atenção nem à quietude nem ao tumulto. Assim, deve trabalhar-se no treinamento com a unicidade da mente.
No hua-tou: "Quem está falando agora?", a ênfase deve recair sobre a palavra "Quem?", enquanto que as outras palavras devem servir para dar uma idéia geral do sentido da frase. Por exemplo, nos hua-tou: "Quem está comendo arroz?"; “Quem está defecando?"; “Quem está vendo televisão?”; “Quem está assistindo ao filme?”; “Quem está dirigindo o carro?”; “Quem está pensando agora?”; “Quem está pondo um fim à ignorância?; assim que se dá ênfase à palavra "Quem?", andando, parado, sentado ou deitado, poder-se-á levantar uma dúvida sem dificuldade e sem ter de usar a faculdade do pensamento para precisar e discriminar. Conseqüentemente, a palavra "Quem?" é uma maravilhosa técnica de treinamento Ch'an. Entretanto, não se deve repetir a palavra "Quem?”ou a frase "Quem está falando agora?" como os adeptos da Seita da Terra Pura, que repetem mecanicamente o nome de Buda. Nem se deve acionar a mente pensante e discriminadora procurando quem é que repete o nome de Buda. Há pessoas que incessantemente repetem a frase: "Quem está repetindo o nome de Buda?" quando seria bem melhor se elas repetissem o nome de Amitaba Buda -como o fazem os seguidores da Seita da Terra Pura- o que daria muito mais méritos. Há os que divagam pensando um monte de coisas e chamam isso de levantar uma dúvida; eles mal sabem que quanto mais pensam mais aumenta seu falso pensamento; tal como alguém que quer subir mas na realidade está descendo. Vocês devem saber tudo isso.
Comumente os principiantes levantam uma dúvida que é muito grosseira, parando de repente e depois continuando; as vezes parece familiar e as vezes parece estranha. Isto não é certamente uma dúvida e só pode ser o processo do pensamento. Quando a desvairada mente errante é gradativamente colocada sob controle, será possível colocar um freio no processo do pensamento e somente isso poderá ser chamado de "prestar atenção ao hua-tou". Mais ainda, pouco a pouco, ganhar-se-á experiência no treinamento e aí não mais haverá necessidade de levantar uma dúvida que aparecerá naturalmente. Na realidade, no começo não há nenhum treinamento efetivo já que o que existe é apenas um esforço para pôr fim ao processo do pensamento. Quando a verdadeira dúvida aparece por si mesma, isso pode ser chamado de verdadeiro treinamento. Esse é o momento em que se alcança uma saída estratégica onde é muito fácil desviar-se do caminho.
Primeiramente, há o momento em que se vivencia uma completa pureza e uma leveza extrema e perde-se a consciência, e se se olha dentro do mesmo ir-se-á entrar num estado de embotamento. Se um mestre esclarecido está presente ele perceberá imediatamente que o discípulo está nesse estado e irá bater no praticante com o bastão afastando o embotamento: muitos despertaram para a verdade desta forma.
Em segundo lugar, quando o estado de pureza e vazio aparece, se a dúvida cessa, esse é o inenarrável estado no qual o praticante é comparado com alguém sentado numa árvore seca e numa gruta ou lavando pedras com água - quando a mente desliga-se dos órgãos dos sentidos, dos objetos dos sentidos e das consciências dos sentidos, alcança-se um estado descrito como: "segurando-se firme no topo de um mastro", ou "imersão silenciosa em água estagnada", ou "sentado no límpido chão branco". Quando se alcança esse estado, deve-se estimular a dúvida que deve ser seguida imediatamente pela consciência e contemplação desse estado. A consciência desse estado é a libertação da ilusão: isto é a sabedoria (prajnã). A contemplação desse estado apaga a confusão: isto é a imperturbabilidade. Esta unicidade da mente será completamente quieta e brilhante na sua imperturbável incondicionalidade, clareza espiritual e completo entendimento, como a fumaça contínua de um fogo solitário. Quando se alcança esse estado obtém-se um olho de diamante - o indestrutível olho da sabedoria - e deve evitar-se o aparecimento de qualquer outra coisa, já que se isso acontece seria como colocar uma outra cabeça encima da cabeça - uma coisa supérflua e desnecessária que obstruiria o treinamento.
Antigamente, quando um monge perguntou ao mestre Chao Chou: "O que se deve fazer quando não há nada para carregar consigo mesmo?", Chao Chou respondeu: "Renuncia a isso". O monge disse: "A que devo renunciar se não carrego nada comigo?" Chao Chou respondeu: "Se você não consegue renunciar a isso, joga-o fora". O estágio acima mencionado é exatamente o do bebedor de água que só ele sabe se ela está fria ou morna. Isto não pode ser expresso em palavras ou discursos e aquele que alcança esse estágio o saberá claramente; assim como seria inútil descrevê-lo para alguém que não alcançou esse estágio. É isto que as próximas linhas significam:

“Quando você encontra um mestre de esgrima, mostre-lhe a espada”.
“Não dê seu poema a alguém que não seja um poeta”.


Cuidando do Hua-tou e Virando a Audição para Dentro
para Ouvir a Própria-Natureza.


Alguém pode se perguntar: "Como pode o método de Avalokitesvara Bodisatva de virar a audição para dentro para escutar a própria-natureza ser considerado treinamento Ch'an? Eu acabei de falar sobre como prestar atenção ao hua-tou. Significa que vocês devem continuamente virar o holofote para dentro e focalizá-lo "naquilo que não nasce e não morre", que é o hua-tou . Virar para dentro a audição a fim de escutar a própria-natureza significa também que vocês devem voltar sua faculdade de audição continuamente e em uma única direção, para ouvir a própria-natureza. "Virar para dentro" é "retornar”. "Aquilo que não nasce e não morre" nada mais é do que a própria-natureza. Quando a audição e a visão são seguidas do som e da forma na corrente mundana, a audição não vai além do som e a visão não vai além da forma (aparência) com a óbvia diferenciação entre ambos. Entretanto, quando se vai contra a correnteza mundana, a meditação é virada para dentro para contemplar a própria-natureza. Quando a "audição" e a "visão" não estão mais procurando o som e a forma eles tornam-se fundamentalmente puros e iluminados e não diferem um do outro. Nós devemos saber que o que chamamos de "prestar atenção no hua-tou" e "virar para dentro a audição para escutar a própria-natureza" não pode ser alcançado através do olho que olha nem do ouvido que ouve. Se o olho e o ouvido são empregados dessa forma eles estarão procurando o som e a forma e como resultado estaremos voltados para as coisas exteriores: isto é; chamado de "sucumbir à corrente mundana". Se há unicidade de pensamento morando naquilo "que não nasce e não morre", sem procurar o som e a forma; isto é: "ir contra a correnteza", "prestar atenção ao hua-tou", e "virar para dentro a audição para ouvir a própria-natureza".


A Determinação em Relação ao Abandono do Samsara
e o Desenvolvimento de uma Mente Persistente.


No treinamento Ch'an deve-se ser determinado no desejo de abandonar o estado de nascimento e de morte e deve-se desenvolver uma mente persistente. Se a mente não está determinada será impossível levantar uma dúvida e o esforço será inútil. A falta de uma mente persistente resultará em preguiça e o treinamento não será contínuo. Apenas desenvolvam uma mente persistente e a dúvida levantar-se-á por si mesma. Quando a dúvida aparece as aflições (klésa) desaparecerão sozinhas. Quando o momento chega é como a correnteza de água que abre um canal.
Agora lhes contarei uma história que eu mesmo testemunhei. No ano Keng Tsu (1900), quando oito potências mundiais mandaram suas forças expedicionárias para Pekim (depois da rebelião Boxer) eu acompanhei o Imperador Kuang Hsu e a Imperatriz Tzu Hsi na fuga da Capital. Tínhamos que nos apressar para chegar à província de Shensi. Cada dia nós caminhávamos várias dezenas de milhas e por vários dias não tínhamos o que comer. Na estrada, um pedestre ofereceu-lhe algumas cascadas de bata doce - na China as cascadas de bata doce são jogadas aos porcos - e achou-as muito saborosas,  perguntando ao homem o que eram. Vocês podem imaginar que quando o Imperador, que era cheio de etiqueta e de pompa, teve que andar uma certa distância ele ficou muito faminto. Quando ele comeu as cascadas de batata doce teve que deixar de lado toda a etiqueta e a pompa. Por que andou várias dezenas de quilômetros a pé, ficou faminto, e teve que renunciar a tudo? Porque as forças aliadas queriam a vida dele e ele tinha apenas um pensamento na mente: salvar sua vida. Mais tarde, quando foi restabelecida a paz, ele retornou à Capital, readquirindo toda a etiqueta e toda a pompa. Agora não mais teria que andar a pé nem passar fome. Se a comida não ficasse no ponto certo, não a comeria. Por que o Imperador agora era incapaz de renunciar às mínimas coisas? Porque as forças aliadas não queriam mais sua vida e porque sua mente não estava mais concentrada em escapar. Se agora ele utilizasse a mesma mente que desenvolveu para salvar sua vida na prática das tarefas religiosas, haveria alguma coisa que não poderia alcançar? Isso aconteceu porque o Imperador não tinha uma mente persistente e assim que as condições favoráveis prevaleceram seus hábitos antigos reapareceram.
Queridos amigos, o demônio assassino da impermanência está constantemente procurando nossas vidas e nunca aceitará um acordo conosco! Vamos imediatamente desenvolver uma mente persistente para sair do ciclo de nascimento e morte. O mestre Yuan Miao de Kão Feng disse: "Se estabelecermos um limite de tempo para sermos bem sucedidos no treinamento Ch'an deveremos agir como aquele homem que caiu no fundo de um buraco de mil chang - o chang equivale a 10 pés chineses - de profundidade. Seus mil ou dez mil pensamentos ficam reduzidos a uma única idéia: como sair do buraco. Ele só tem isso na mente, desde o amanhecer até o anoitecer, e desde o anoitecer até o amanhecer do dia seguinte. Se ele treina desse jeito e não realiza a verdade em três, cinco ou sete dias eu serei culpado de ter proferido um pecado verbal pelo qual pagarei no inferno onde as línguas são arrancadas". O velho mestre foi determinado na sua grande misericórdia e como estava apreensivo de que não fossemos capazes de desenvolver uma mente persistente ele fez esse grande voto para garantir nosso sucesso.
Há dificuldade e facilidade no treinamento Ch'an, tanto para os principiantes como para os veteranos.


Dificuldade dos Principiantes:
Uma Mente Dispersiva.


Os defeitos mais comuns do principiante são: a incapacidade de abandonar o falso pensamento; a ignorância causada pelo orgulho e pelo ciúme; as obstruções causadas pela concupiscência, raiva, estupidez e amor; a preguiça e a gula; e, o apego ao certo e ao errado e ao eu e aos outros. Com a barriga cheia de todos esses defeitos, como se pode ser receptivo à verdade? A maioria é "filhinho de papai", incapaz de livrar-se de seus hábitos e da menor concessão ou de suportar o mínimo contratempo. Como podem levar a frente o treinamento na prática de suas tarefas religiosas? Eles nunca pensam no nosso mestre original, Sakyamuni Buda e de sua posição quando abandonou seu lar. Algumas pessoas que conhecem um pouco da literatura usam seus conhecimentos para interpretar os ditados antigos, vangloriam-se de suas inigualáveis habilidades e consideram-se superiores -uma das dez visões erradas. Quando gravemente doentes, não são capazes de suportar o sofrimento com paciência. Quando estão prestes a morrer eles perdem a cabeça e percebem que seus conhecimentos são inúteis. Aí seu arrependimento será tardio.
Alguns levam as práticas religiosas a sério, mas não sabem como começar seu treinamento. Outros têm medo do falso pensamento mas não sabem colocar um fim nele. Assim, lamentam-se dele o dia todo e culpam-no pelas suas obstruções cármicas, perdendo o entusiasmo religioso. Alguns tentam resistir ao falso pensamento até a morte fechando furiosamente os punhos, para manter o moral elevado, comprimindo o tórax e abrindo os olhos bem abertos, como se estivessem fazendo realmente algo muito importante. Eles travam uma batalha de vida ou morte contra o falso pensamento e não somente não terão sucesso no seu intento como também acabarão vomitando sangue ou ficando doentes. São pessoas que têm medo de cair no vazio mas não sabem que estão dando asas ao demônio. Conseqüentemente, eles nem evitam o vazio nem alcançam a iluminação.
Há os que concentram suas mentes na questão do despertar e não sabem que procurar o despertar e desejar a Budeidade nada mais é do que uma grande falsidade: eles não sabem que cascalho não pode virar arroz e então terão que esperar até o ano do jumento para alcançar o despertar - não existe o ano do jumento no calendário chinês.
Há os que conseguem sentar-se em meditação durante o tempo em que se queima um ou dois incensos e assim obtêm algum benefício, mas isso equivale apenas a negra tartaruga cega que esticou sua cabeça e acertou o meio do buraco de uma madeira que flutuava no mar. Isto é o resultado de uma raríssima coincidência e não o produto do verdadeiro treinamento. Mais ainda, o demônio da felicidade já se infiltrou nas suas mentes. Há casos em que o maravilhoso estado de pureza e claridade realiza-se na quietude mas não se realiza no tumulto e por essa razão os praticantes evitam os lugares tumultuados e procuram lugares tranqüilos. Eles não percebem que já consentiram em se tornarem escravos do demônio da quietude e da agitação.
Há muitos mais casos dos que os citados anteriormente. É realmente muito difícil para os principiantes saber qual o método correto de treinamento: consciência sem contemplação levará à confusão e à instabilidade, e contemplação sem consciência é como se submergir em água parada.


Facilidade dos Principiantes:
Abandonando o Fardo do Pensamento e
Gerando um Pensamento Único.


Embora o treinamento pareça difícil, torna-se muito fácil quando o método é conhecido. Onde jaz a facilidade para os principiantes? Não há nada de engenhoso nele porque se baseia em "renunciar". Renunciar a que? Ao fardo das aflições (klésa) causadas pela ignorância. Como se renuncia a elas? Todos vocês ficaram do lado da cama de um morto. Se vocês o xingam, ele não mostrará nenhuma reação. Se vocês batem nele duas ou três vezes com o bastão ele não revidará. Antigamente ele pactuava com a ignorância mas agora não faz mais isso. Antigamente ele almejava uma boa reputação e riqueza mas agora ele não deseja mais isso. Antigamente estava dominado pelos hábitos mas agora está livre deles. Agora ele não faz mais distinções e renunciou a tudo.
Caros amigos: quando exalar o último suspiro este corpo físico nosso torna-se um cadáver. Porque precisamos deste corpo somos incapazes de renunciar a tudo resultando na criação do eu e os outros, do certo e do errado, do prazer e da dor e da aceitação e da rejeição. Se considerarmos este corpo apenas como um cadáver nós não o desejaríamos e certamente não o consideraríamos como nosso. Assim sendo, haverá alguma coisa à qual não seriamos capazes de renunciar?
Apenas temos de renunciar a tudo, dia e noite, não importa se andamos, paramos, sentamos ou deitamos, no meio tanto da quietude como da agitação, ocupados ou desocupados. Por todo o corpo, dentro e fora, deve existir apenas uma dúvida, uma uniforme, harmoniosa e contínua dúvida, sem misturar-se com nenhum outro pensamento. Em outras palavras, um hua-tou, que é comparado com uma longa espada apontada para o firmamento e pronta para cortar quem aparecer, seja um demônio ou seja um Buda. Assim, se não tememos o falso pensamento; quem nos irá perturbar, quem irá distinguir entre quietude e agitação e quem se irá apegar à existência e à não-existência? Se há o falso pensamento, esse medo aumentará o falso pensamento. Se há consciência da pureza, essa pureza imediatamente tornar-se-á impura. Se há medo de cair na não-existência, imediatamente haverá uma queda na existência. Se há o desejo de alcançar Budeidade, imediatamente haverá uma queda no caminho dos demônios. Por isso, se diz: "Carregar água e catar lenha para o fogo não são mais do que a verdade. Arar os campos e cultivar a terra são potencialidades totalmente Ch'an". Isto significa que, na prática das tarefas religiosas, não apenas o cruzar das pernas para meditar sentado pode ser considerado treinamento Ch'an.


Dificuldade dos Veteranos:
Incapacidade de Dar um Passo à Frente Depois de Ter
Alcançado o Topo do Mastro de Cem Pés de Altura.


Onde jaz a dificuldade para os veteranos? No seu treinamento, quando sua dúvida tornou-se verdadeiramente real, sua consciência e sua contemplação estão ainda ligadas ao estado de nascimento e morte e a falta de consciência e contemplação é a causa de sua queda no campo da não-existência. É realmente difícil alcançar esses estágios, mas há muitos que são incapazes de ir além deles e contentam-se com permanecer no topo de um mastro de cem pés de altura sem saber como dar um passo a frente. Outros, após terem passado por esses estágios, são capazes de alcançar na quietude alguma sabedoria que os capacite para entender alguns kung-an deixados pelos antigos; mas eles também renunciam à dúvida, e pensando que alcançaram um despertar completo, compõem poemas e gathas, piscam o olho e levantam as sobrancelhas, chamando a si mesmos de iluminados: eles não sabem que são escravos do demônio.
Há também os que não entenderam o significado das palavras de Bodidarma: "Coloque um fim na formação de todas as causas exteriores e não mantenha um coração ofegante no interior; então com a mente como uma parede você será capaz de penetrar a verdade", e as palavras do Sexto Patriarca (Hui Neng): "Não pense no bem nem no mal; neste preciso momento, qual é o verdadeiro rosto do venerável Hui Neng?". Eles acham que permanecer sentados com as pernas cruzadas como galhos podres numa gruta é o melhor caminho. Essas pessoas confundem a miragem de uma cidade com a cidade santa e uma terra estranha com sua terra natal. A história da velha senhora que queimou a cabana serve para advertir esses troncos de madeira podre.
Uma velha senhora sustentava um monge Ch'an havia vinte anos e costumava mandar todos os dias uma menina de dezesseis anos com comida e oferendas. Um dia a velha senhora ordenou à menina que lhe fizesse a seguinte pergunta: "Como é que é neste momento?" O monge respondeu: "Um tronco de árvore podre numa fria caverna, depois de três invernos não tem calor". A garota deu a resposta do monge para a velha senhora que disse: "Eu tenho feito oferendas a alguém que apenas pode provar que é um homem mundano". No dia seguinte ela expulsou o monge da caverna e tocou fogo na cabana.
O monge alcançou apenas o topo do mastro de cem pés de altura, mas negou-se a dar um passo a frente. Como ele era apenas um tronco de madeira podre, a velha senhora ficou furiosa, mandou-o embora e tocou fogo na cabana.


Facilidade dos Veteranos:
A Continuação Estrita e Ininterrupta
do Treinamento Ch'an.


Onde jaz a facilidade para os veteranos? Jaz apenas na ausência de auto-satisfação e na continuação estrita e ininterrupta do treinamento Ch'an: a rigorosidade deverá ser mais rigorosa, a continuidade mais contínua e a sutileza mais sutil. Quando o momento chega, o fundo do barril cairá sozinho - isto é, quando o fundo cai o barril esvazia-se da laca preta ou ignorância e a iluminação é alcançada; de outra forma será necessário recorrer aos mestres iluminados que ajudarão a tirar os últimos pregos ou estacas de obstrução.
A canção do Mestre Han Shan (Montanha Fria) diz:
“Do alto do pico de uma montanha
Apenas o espaço ilimitado é visto.
Como se sentar em meditação, ninguém sabe.
A lua solitária brilha sobre a piscina congelada,
Mas na piscina não há nenhuma lua,
A lua está no firmamento noturno.
Esta canção é cantada agora
Mas não há nenhum Ch'an nesta canção”.

As primeiras duas linhas mostram que aquilo que é verdadeiramente eterno é único e não pertence a nenhum gênero de coisas, brilhando luminoso sobre o universo sem encontrar nenhum tipo de obstrução. A terceira linha mostra o maravilhoso corpo do Butatatata - a realidade - que os homens deste mundo não conhecem nem pode ser localizado nem por todos os Budas dos três tempos; daí as palavras: "ninguém sabe". As próximas três linhas mostram o expediente do mestre para revelar esse estado. Nas últimas duas linhas uma especial advertência para todos nós: não confundamos o dedo com a lua; isto é, nenhuma destas palavras é o Ch'an.


Conclusão

Minha exposição é como um amontoado de coisas, um obstáculo que interfere porque onde queira que haja palavras ou discursos não há o real significado - isto é, palavras e discursos não podem expressar o inexprimível; o significado real é a realidade que não pode ser descrita ou expressa. Quando os mestres antigos recebiam seus alunos usavam seus bastões para batê-los ou gritavam para acordá-los e não havia tantas complicações como hoje em dia. Entretanto o presente não pode ser comparado ao passado e torna-se, portanto, imperativo apontar o dedo para a lua. Queridos amigos, olhem dentro disso tudo; pois, afinal de contas, quem está apontando o dedo e quem está olhando a lua?